
São Paulo na década de 1970
| AwebicOutro dia topei com a palavra espelunca. Elástica, longa, com um looping na terceira silaba — lun — ou segunda de trás pra frente. É dessas palavras extensas que não se rendem à proparoxítona. Às vezes, parece que vai escorregar para especular, mas dá um voleio e em vez de subir, desce. Pra cova, cavidade, furna.
Espelunca pulou do grego spelugx (não me pergunte com se pronuncia essa palavra) para o latim spelunca. Adoradores das vogais, metemos uma prótese nela — a letra e — pra facilitar as coisas. Cariocas e afins ainda acham um jeito de enfiar um i alongado entre o e e o s, produzindo o célebre chiado.
O sentido de espelunca deslizou pra lugar escuro e imundo, derivando para qualquer lugar mal frequentado, sujo, também chamado de baiuca, bodega, segundo dois antônios, um Houaiss e outro Geraldo da Cunha.
Mas, papo grosso: na década de 1970, embrenhei-me por algumas dessas furnas gastroetílicas. Em São Paulo, donde vim, onde nasci.
Uma espelunca na avenida Santo Amaro, esquina com a Vieira de Morais, foi uma escola.
A entrada não varava os três metros de largura, um quase nada de fundura, com uma mesa de bilhar e balcão. Pinga, cerveja, fogo paulista e rabos de galo eram os líquidos; de sólido, os fantasmagóricos ovos rosa e o infalível torresmo. O píncaro era o Sarapatel, devorado geralmente às duas da manhã, quando o bom senso gastronômico dá um perdido. Um boteco nordestino, com certeza.
Era preciso estar atento e forte naquela época..
Caminhávamos em bando, gurizada de 14 a 18 anos, pela madrugada. Empunhávamos garrafas de aguardente ou de vinho, da pior fonte. Sempre éramos parados pelas veraneios rubro-negros da polícia militar de São Paulo. “Sim, senhor”; “Não, senhor”, aquela encheção de saco. Sobravam uns sopapos quando um de nós falava mais alto.

O famigerado camburão
Sai ditadura entra outra, e a coisa só piora. O tal modus por seculus seculorum operandi de nossa PM.
Passada a bronca, seguíamos em frente. Garrafas vazias, crânio em brasa, recolhíamo-nos ao nosso antro generoso, aberto à hora alta, quando muitos outros da interminável avenida Santo Amaro arregavam.
Apesar da má fama, jamais sofremos um arranhão ali.
Não me lembro do dono, nem do nome daquela nossa baiuca noturna, útero de deslocados e delirantes.
Meu amor pelas ruas — não o medo — foi nutrido ali.
Moleque Eugênio, vulgo Genão , por onde andava tua mãe ou teu pai que não te cataram nessa espelunca para te dar uns bons pescoções. Vai ver que achavam que o seu lindo cabeludo estava enfiado numa biblioteca paulistano rachando o tutano com filosofia ou literatura. Viva a espelunca e os pais avoados!!! N
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Viva!!!
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Amigo querido, Geninho! Que delícia sua crônica! Acho que minha casa era uma espelunca: não era suja, mas desorganizada, cheia de tralhas, coisas das quais não conseguíamos nos desfazer. Tenho TOC com isso hj. Sou bem desapegada, para minha casa não virar uma espelunca! Hahaha!
Mas nunca entrei numa espelunca dessas relatadas na crônica! Acho que era bem “guria de prédio”, ou melhor, “de espelunca” kkk!
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Sempre é tempo! Espeluncas é que não faltam rsrsrs
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Eugênio, das coisas das quais poderia me arrepender nesta semana, certamente, a maior é a de não ter lido a sua deliciosa crônica. Na dose – aquela das boas que só tomamos em um bar -, provamos cada uma das palavras. Grande abraço, Phelipe.
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Obrigado, Phelipe. É difícil combinar os ingredientes. Tô tentando. Forte abraço.
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Bravo. Sempre com a energia e curiosidade do tempo das espeluncas.
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Já tá Bahia? Mande fotos das espeluncas de lá!!
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