
Ágatha Vitoria Sales Félix | Instagram | Reprodução O Globo
Que tiro foi esse?
À entrada da primavera, em 20 de setembro de 2019, uma bala de fuzil matou Ágatha Vitória Sales Félix, de oito anos. Estava com o avô em uma kombi que servia de transporte público no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.
Fotos dela correram a internet. Em todas, sorri com aqueles dentes desengonçados da idade, que a deixam mais adorável. No Instagram, a vemos ao lado de dois balões amarelos; nos jornais, de Mulher Maravilha, Ágatha Félix humaniza a heroína hiperamericanizada.
Médica, promotora, jornalista, vereadora, que papel desses Ágatha Vitória assumiria aos 20, 30 anos? No lugar dos balões amarelos, ela seguraria um estetoscópio, a constituição, um celular, uma câmera…

Ágatha Félix | Reprodução Instagram
Como puderam?
Como podem, há séculos.
Como em Porongos, em 1844, quando cerca de cem ex-combatentes negros da guerra da Farroupilha – os lanceiros negros – foram traídos e massacrados em Pinheiro Machado, cidade do Rio Grande do Sul.
Como em Queimados, em 1849, no Espírito Santo, quando morreu boa parte dos duzentos escravos que se rebelaram por não conseguirem a alforria.
Como em Canudos, 1897, quando cerca de 20 mil brasileiros foram mortos, dos quais quatro centenas degolados depois de aprisionados.
Como na Ilha das Cobras, em 1910, quando 16 marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata morreram asfixiados numa cela. Outros tantos foram executados a caminho da Amazônia, onde trabalhariam na extração de borracha.

Como puderam duas vezes no mesmo ano, um mês seguido do outro, no Rio de Janeiro, em 1993: em julho, nas fuças da igreja da Candelária milicianos assassinaram oito meninos que dormiam próximos ao templo; em agosto, mais de trinta exterminadores invadem a favela do Vigário Geral, Zona Norte, e massacraram vinte e um moradores.
Como puderam na mesma cidade, em 2013, sumir com o pedreiro Amarildo Dias de Souza; ou matar o tio de Ágatha Sales, o mototaxista Caio Moraes da Silva, em 2014; e mais cinco crianças só este ano na mesma Rio de Janeiro.
Quem irá pará-los?
Ouvindo o rádio, hj, não tinha visto foto da menina. Vi agora, em sua crônica. Sim, uma criança negra. Agora dói mais ainda em mim, dói por ser inocente (mais uma bala perdida que sempre encontra um alvo), dói por ser uma criança, dói por ser mulher, dói por ser negra.
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