Dando tiro pra tudo quanto é lado, o povo da rua vai tentando driblar a mó que há séculos os tritura sem descanso.
De uns tempos pra cá o povo da rua tá bombando. Mais gente dormindo na calçada, mais homens e mulheres e crianças vendendo frutas, legumes, protetores de celular e – acima de tudo e quem sabe até de Deus – balas. Vendem desde pastilhas de hortelã, de café, passando pelas expressionistas balas de goma, chegando ao refinamento das coloridas Fini – azedinhas e molengas em formato de vareta.
São vendidas de 50 centavos a 2 reais o pacotinho nos sinaleiros, num engenhoso processo comercial, em que o retrovisor do carro serve de mostruário do produto, num intervalo de 30 ou 90 segundos em que o farol estaciona no vermelho.
Um magérrimo empreendedor-atleta dá dois tiros de – acho – 30 metros. No primeiro, projeta-se pelos corredores entre os carros – prestando atenção para não ser perfurado por uma moto do iFood ou afins – colocando os saquinhos de balas nos retrovisores; retorna e dá o segundo tiro, retirando os pacotinhos, driblando as motos e pegando o dinheiro aguado dos motoristas menos casmurros que lhes compram algo.
Ficam nisso quantas horas ali, nesse corre desportivo-comercial?
Com as mesmas pernas mas sob outro método, diferentes Senhores da bala percorrem em círculos o centro de Curitiba.

Mapa do Centro de Curitiba
Um deles, o Alexsandro, com x e s como faz questão de frisar, veio do Pará. De Redenção. Da Floresta Amazônica para a terra dos Pinheiros, baldeou por boa parte do Brasil. Contou que saiu de casa porque era adotivo, o sexto de cinco irmãos.
– Num sou ladrão, doutor.
– Sei disso, Alexsandro.
Perguntei se ele pensava em voltar pro Norte e os olhos inflamados deram a letra:
– Nunca, lá é ruim demais, aqui é melhor.
Comprei dois pacotinhos de bala e desci a ladeira do largo da Ordem pensando que mundo pior seria esse: pior que viver na rua, passar fome e ser olhado como pária? como desomem?
Na Mateus Leme, ainda no Largo, esbarrei na Alexsandra – com x e s também, credulíssimos leitores. “Trazia a fome nos ombros”* e pastilhas de hortelã no colo, do tipo Garoto. Começamos a conversar e, ligeira, atirou:
– Tô aqui pra arrumar uns papéis do Evangélico.
Para alívio de todos e todas, não tinha nada a ver com um Malafaia ou Feliciano da vida (ou da morte), mas com um hospital daqui, da capital do Paraná. A vendedora descera de Maringá – norte do estado – até a capital ecológica porque o marido adoecera e precisava de umas guias.
Levei dois bastões do “Garoto”, segui pela 13 de Maio e entrei pela Cerro Azul, no limite com a Nestor de Castro.
Em frente à pastelaria Xing Long, outro vendedor, o Clóvis, oferecia mais um tipo de aglomerado açucarado. Portava uma guia de umbanda. Perguntei de que orixá e ele:
– Num sei não, patrão, ganhei de presente.
Marrom e dourado, chutei ser de Xangô. Calibrei mal.
Cruzei com o Clóvis dias depois, no mesmo lugar. Nos reconhecemos e ele, entre animado e assustado, me contou que havia perdido o cordão mas descobrira que era da Maria Padilha, entidade da Umbanda. Então, disparei, à queima-roupa:
– Cadê as balas?
Tava sem. Usou o dinheiro dos doces pra comprar Diazepan e Omeprazol. Me mostrou a receita e explicou que devia tomá-los porque não segurava o que comia.
Natural de Londrina, vagou por todo colar de cidades do Norte Pioneiro paranaense até descer com a mãe pra Curitiba. O pai ficou por lá. Me puxou de lado:
– Minha mãe é viciada em cocaína.
Disse que morava por aí porque ela praticamente o expulsara de casa.
Perguntei quando ia ter bala de novo:
– Amanhã, Patrão, amanhã.
Remexi as que estavam soltas no meu bolso e pus uma na boca. Lembrei da imagem formulada pelo Darcy Ribeiro: o “Brasil é uma máquina de moer gente”. Segui em direção à XV de Novembro remoendo umas ideias amargas.
O açucarado na boca deu um alento.
*Verso do poema “Fábulas de João Tarde II”, de Joaquim Cardozo, poeta e engenheiro pernambucano.
Crônica cortante. Um retrato que só esse gênero permite. Acho que um fotógrafo que quisesse fotografar os vários episódios relatados não daria conta das imagens aqui contadas. Parabéns, Eugênio. Obrigado!
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Quanta riqueza da vida destas pessoas anônimas, rejeitadas, “moídas”, invisíveis aos passageiros menos sensíveis. Excelente crônica. Parabéns, Eugênio, o Paulista mais Paranaense que eu conheço. Abços
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Oi Lourdes, gostei desta, já tô virando paranaense. Embora desejasse morrer mineiro. Obrigado!
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