Gosto de pensar que os aclives e declives do bairro tenham se infiltrado nos versos que o poeta escreveu por aqui de 1976 a 1988
Esta crônica começa pendurada na anterior. Segue pelos despenhadeiros do Pilarzinho. Se você chegou agora ao Letra Corrida, alcoogeleizada leitora, alcoolgeleizado leitor, Pilarzinho é um bairro que escapa para o norte, onde Curitiba levanta morrotes emulando a imponente Serra do Mar. E escapo eu, por algumas horas, por suas ribanceiras, para dar conta das demandas deste blog.
As ruas daqui se retorcem como podem entre curvas e ladeiras. Parecem mais escavadas do que abertas. Têm nada de cartesianas. Se um urbanista deve achar um relaxo o desalinho dessas ruas suburbanas, é um alento para mim entrever nesse desarranjo a natureza (e seus caprichos) levando a melhor.
Relaxos e caprichos que talvez expliquem por que Paulo Leminski decidiu assentar-se neste arrabalde, com a família, em 1976. Gosto de pensar que os aclives e declives do bairro tenham infiltrado-se nos versos que o poeta escreveu no Pilarzinho.

Encontro das ruas onde Leminski morou no Pilarzinho/Google Maps
Quadras acima de onde me isolo, arranca a primeira rua onde Leminski morou no bairro, a Jorge Brahim Cury, 757. Ela se precipita da Amauri Lange Silvério, na qual a Humberto de Campos da crônica passada havia se agarrado, lembram-se, mascaradas, mascarados leitores? Em declive, a Brahim escorre entre calçadas descuradas até ser obrigada a curvar-se à direita e ter de prender o ar para encarar o aclive brabo antes de alcançar o seu termo, duas quadras à frente, na temerária e longa Raposo Tavares. Neste extremo, dizem, estava a casa do poeta afro-polaco e da Alice Ruiz.

Capa do livro publicado em 1983, pela editora Brasiliense
Mas ainda não cheguei lá. Bem na curva, está o Salão Lolla, onde alguém considerou um bem de primeira necessidade cortar os cabelos, assim como uma cliente-grupo-de-risco considerou tirar a cutícula no microssalão Meninas Graciosas, mais adiante.
Exercito meus pulmões à espera do Covid-19, arfando aclive acima. Ora piso no asfalto, ora nas calçadas. Essas por vezes desmancham-se no piche da Brahim em línguas anêmicas projetadas das garagens das casas. Outras, levantam pequenas muralhas que obrigam-me a contorná-las pelo piche da rua.
Desviando-me de dois pedestres, chego à Alexandre von Humboldt, no pico da pirambeira. Paro e deixo os pulmões anticoronavirarem-se. Miro as montanhas do Marumbi, de um lado; e antenas de celular, do outro. A serra deve ter sido contemplada por Leminski; as antenas, não. O poeta deixou as penhas deste mundo em 1988, quando os celulares eram artefatos de ficção científica. Dizem que um dos caprichos da casa da Brahim era um telefone fixo.
Recomeço. Agora em solo plano e gentil. Reparo nas casas de madeira que resistem à chegada dos sobrados e minicondomínios, que pouco a pouco minam a beleza desta cidade. (Um dia acordaremos e o mundo terá virado uma imensa Miami – acelera, coronavairus!). Caprichosas, simples, combinam com o desalinhamento geral. A graça do bairro é manter um ar de chácara, ainda que misturado a essa zorra de postes, fios, pisos de porcelanato, e toldos de garagem que corroem a estética nossa de cada dia.
Bom, onde estava mesmo? Ah, a algumas casas do número 757 – número que procuro mas não encontro. Não existe mais. No lugar onde suponho que estivesse, estão as Meninas Graciosas. Talvez as meninas sejam caprichosas, mas foi um relaxo a cidade não ter preservado a morada de um dos seus melhores poetas. Mas como o polaco não era bobo nem nada, prevendo o descaso de agora, em 1983, deu meia volta na Jorge Brahim Cury, recuou um quarteirão, virou à direita, seguiu por mais duas quadras e alugou uma casa na Antonio César Casagrande, 97, e ali escreveu até morrer. A casa ainda está lá.

Foto da segunda casa de Leminski/Fonte Roteiro A Curitiba de Leminski
Estive lá bem diante dessa casinha de madeira onde viveu e morreu o meu poeta do coração Leminski. Foi outro poeta do 💋 que lá me levou lá, este mesmo que traçou a rota desta linda crônica. Te amo.
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