Não vai colar

Não me conformo é com o sarcasmo: pregar a sentença de morte no corpo da sentenciada.

Ministério Público Estadual do Paraná manda suspender o corte de 231 araucárias em Cascavel. Pretendia-se abater mais de duas centenas de árvores no meio da pandemia. Agora, em maio. Meses antes, em janeiro, 4 mil “exemplares arbóreos” no Jaraguá, em São Paulo, não tiveram a mesma sorte. O alcaide cascavelense alega a necessidade de retificar a estrada que liga Três Barras ao município viperino. Na capital paulista, a derrubada servirá à edificação de habitações populares, erguidas pela construtora Tenda.

Sim, minha apartada leitora, meu apartado leitor, perto do que derrubam na Amazônia, isso é um jogo de varetas. Mas no Norte do país acontece um Armagedon ambiental. Os casos de Cascavel e São Paulo são o arroz com feijão. A árvore no chão nosso de cada dia. A naturalização da destruição da… natureza.

Mas estou indo longe demais. Cheguei aqui por causa de uma placa que flagrei no Pilarzinho durante minhas rondas pelo bairro. (Ronda, pois passeio é coisa pré-pandemia.) Mais especificamente na rua Francisco Caron, no topo do barranco que descamba na Rolf Faria Gugisch, via onde vou me equilibrando nestes desolados-dias.

Trecho da rua Francisco Caron, maio 2020/Foto minha

A Caron é importante. Leva-nos da Nilo Peçanha até quase a Amauri Lange Silvério, velha conhecida das leitoras e leitores do Letra Corrida. Ela termina mesmo na Primeiro-Ministro Brochardo da Rocha. Rua extraordinária, a Brochardo arremessa-se sessenta e quatro metros abaixo, veloz e serpentina, até acalmar-se a um quilômetro à frente no asfalto arcadista da Cláudio Manoel da Costa. Mas deixemos a primeiro-ministro, que nada tem com esta crônica.

Mal pregada num tronco de bracatinga, a placa em questão serra: “Corto Árvores”. Debaixo da oração escarninha, escorregam os números do celular do lenhador. Oito algarismos apenas, que oscilam quase ilegíveis, lavados da chuva. Deve estar ali há muito tempo.

E o lenhateiro ainda pulsa. Liguei pra ele. Não consegui arrancar-lhe o valor do serviço. Depende da árvore, do lugar, disse. Business, enfim. Claro que o serrador do Pilarzinho é um coadjuvante. Os tomba-árvores de Cascavel e São Paulo são profissa. Nem tisnam os ternos bem cortados durante o bota-abaixo ambiental. O lenhador se arrisca e, no fim, só petisca.

Cortar árvores ainda rende em Curitiba/Foto minha

Mas não me conformo é com o sarcasmo: pregar a sentença de morte no corpo da sentenciada. Como fica a Bracatinga que leva no colo duro o cínico colar? Anunciando o destino das amigas, pecham-na de traidora? E os outros “exemplares arbóreos” que todo dia têm de aguentar-se verticalmente ao lado da bracatinga-carrasco? Sentem-se como?

Isso acaba por me lembrar, coléricos leitores, coléricas leitoras, que assim estamos nós. Toda manhã despertamos com um colar semelhante. No nosso, há duas sentenças, uma do Sars-CoV-2, outra do verme que babuja ódio no planalto central. Portamos esse colar sem poder arrancá-lo. Conseguimos esquecê-lo parte do dia. Mas, como a Bracatinga da Francisco Caron, não nos habituamos com ele.

Nada de naturalizar. Desarvorados, aguardamos a hora de arrebentá-lo.


Reparação: foi suprimido o nome do lenhador que constava nesta crônica, para preservá-lo de uma injustiça. (11/05/2020 – 15h46)

4 comentários em “Não vai colar

  1. Quantos colares incômodos levamos em nossos colos, feito a bracatinga. Ela não tem escolha, nós ainda temos a possibilidade de arrancá-los, arrebentá-los..o cordão está resistindo, mas quando estourar – lavaremos a alma. Caríssimo escritor, parabéns por reunir tantos atributos, além da arte com as letras, ainda insere no contexto social de forma cênica o que torna a leitura 📚 extremamente participativa. Vivaa!!

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    1. Obrigado, Lourdes! O bom da crônica é que ela dá liberdade de ligar coisas que aparentemente não teriam ligação. José de Alencar reuniu as dele com o nome Ao correr da pena; Machado a comparou com o voo do colibri, e por ai vai. Isso é bom, mas também é difícil. Mas difícil mesmo é passar pelo que estamos passando. Abraço enorme!

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  2. contra vós, porque a favor do vitor. o vitor, mestre escriba, não babuja nem abate, raro eutanasia alguma moribunda que o requesta e mais faz engalanar e dar inda maior viço às que verde vicejam. o vitor, assisado mestre, ama e alimenta vasta prole com trabalho duro. o vitor ama. e eu amo o vitor. o jair odeia. e eu odeio o jair. o jair e o seu colar. seu colar de pérolas pútridas… fascistas, seu colar de ministros ignorantes e odiosos, seu colar de crimes. mas o mestre tem razão, se sob o atual estado das coisas está difícil salvarem-se mesmo as icônicas que vivem a palmos de nós, às pobres irmãs da floresta resta o justo protesto expresso no lamentoso ranger das raízes e no estrondoso tombo impiedoso do tronco. e é no duro impacto desse tombo derramam cem, cem e mil, mil e cem lágrimas. choram indignadas do ultraje, e não têm culpa se suas lágrimas têm forma de sementes.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Como disse, o Vitor arrisca mas não petisca. Arrisca a vida cortando árvores. Vou reparar o dito contra o Vitor. Embora o dito tenha sido contra os homens de terno limpo que rodeiam o babujador do Planalto. Mas Vitor, de fato, num tem nada com isso. Abraço.

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