Mas de que serve, calejada leitora, calejado leitor, escrever sobre uma esponja velha quando ontem morreram mil pessoas e amanhã morrerão mais mil?
Enternece-me a esponja velha. A que singra litros de gordura animal, percorre quilômetros de fibras vegetais, esfalfa-se em meio a arrobas de farinha de todo grau e, molenga, aporta na praia. A maciez inicial verde-amarela, em que os dedos do pianista de pia sentem as notas de uma sonata de Mozart, fenece. A ternura dá lugar a uma língua de polímero exausta, incapaz de assoviar um dó-re-mi.
Sem pulmões para atravessar a gordura que ocupa uma Baía da Guanabara, a flácida lâmina sintética é engolida pelo oceano untuoso. Torna-se apenas uma mediadora entre o óleo e o detergente. Rebaixa-se a um Perfex, a uma flanela, a um trapo qualquer. Louça lavada, esquecem-na amarfanhada na borda da cuba, como um molusco moribundo.

Imagem extraída da Superinteressante
Mas mal rompe a manhã, a ciranda recomeça. Gelam-lhe as fibras plásticas ao ver a vasilha de leite. Sabe que crostas agarram-se à parede da leiteira como estivessem ali desde o primeiro dilúvio sumério. Sem o préstimo da palha de aço, o que lhe resta das fibras sintéticas esfola-se naquela goma láctea arqueozoica. Prestes a desistir, percebe o grude dissolver-se sob a ação do Gilgamesh das pias, a água fervente. A essa altura, deixa de ser esponja para ser luva de proteção. Escarificada a vasilha, a bucha é deixada na margem da pia como um fóssil antediluviano.
Adormece, então. Sonha-se macia e serrilhada. Navega numa cuba amazônica onde panelas, pratos e talheres pulam à flor da superfície como boto; riscam as águas como tracajás; varejam o fundo como pirarucus. Com doçura, acaricia-lhes os dorsos, cascos e escamas. As águas não são turvas, tudo desliza, nada gruda em nada. Ao despertar, vê-se na companhia de formigas e moscas, sarapintada de salmonelas e escherichias coli. Sem funeral, nem lágrimas, acorda no lixo depois de duas semanas de trabalho exaustivo.
Mas de que serve, calejada leitora, calejado leitor, escrever sobre uma esponja velha quando ontem morreram mil pessoas e amanhã morrerão mais mil, neste país? É que o pedaço de espuma carcomido no canto da pia lembrou-me o Brasil. Verde-amarela, macia, como o país que adoro e do qual nunca saí nem pra ir até uma esquina paraguaia, logo perde brilho e ternura à força da violência e injustiça diárias.
A essa altura me pergunto se vale a pena retirar outra esponja da embalagem e testemunhá-la macerar-se na mó de sempre.
Retiro.
Vale uma alvorada. Um segundo sem dissabor.
Nota do Revisor: Onde lia-se “Gela as fibras…”, agora lê-se “Gelam-lhe as fibras”; e “boto” e “tracajá” foram alterados para “botos” e “tracajás”, e suprimidas duas vírgulas a mais. Alteração feita às 22h14 de 25/05/2020 por E.L.
Parabéns meu irmão. Bonito de acompanhar as mutações das suas maneiras de pensar e escrever, desde os textos infantes do jornal do centro estudantil nos anos 1970, até aqui. Realmente e um privilégio não só pelo tempo , mas principalmente pela tenacidade. Grato Salloma
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Meu caro, grato sou eu por contar com tua amizade até hoje.
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