Mal toco em um ícone, um par de rostos irrompe na tela do celular, levando altos papos.
Tenho tomado muitos sustos. Com laives. (permitam-me o abrasileiramento, ortodoxa leitora, ortodoxo, leitor.) Ora no Facebook, ora no Instagram.

Mal toco num ícone, um par de rostos irrompe na tela do celular, levando altos papos. Travado, ouço uma saudação: Olá, Eugênio! Sem graça, dou um perdido e deslaivo. Às vezes, disfarço, marco presença, lanço um emoji simpático e vazo. (E sempre fico na dúvida se me viram.)
O pior é que esse processo parece ter migrado para o mundo presencial. Volta e meia levo sustos com os objetos em casa, que, à minha revelia, customizaram seus lugares.
Uma dessas laives presenciais deu-se no meu quarto: ao abrir a gaveta da cômoda dei de cara com meu RG, cuja foto me encarava com os olhos de três décadas atrás. Que fazia ali, fora da carteira, onde costumava ficar há sessenta e sei-lá-quantos dias? Desgrenhado, a película de plástico descolada, parecia querer lacrar algo sobre minha identidade, o que preferi deletar num megagigabyte de velocidade
Sem função, as coisas vão se espalhando pela casa, maquinando laives repentinas. Minha bolsa pendura-se há dois meses no encosto da cadeira. Virou item de decoração. Tudo que transportava, agora distribui-se aleatoriamente pelos cômodos em que me quarenteno: documentos, chaves, canetas, cartelas de comprimidos, livros, pacotes de bala, afins e desafins. Ver o cartão do banco, notas e moedas no chão da varanda terá um preço?
Mas às vezes depois dos sobressaltos, vem uma bonança.
Dia desses saltei pra dentro de uma conversa no Instagram. Falavam de literatura o poeta Antonio Cícero e uma editora da Companhia das Letras. Fiquei bom tempo laivando ali. O poeta tinha uma generosa mesa de bebidas atrás dele, o que obrigou-me a despejar litros de emojis na tela.
Ouvi muita coisa boa, entre elas dois poemas, “O Sobrevivente”, do Drummond, e “Aos que vão nascer”, de Brecht. Em ambos, versos que caem como uma laive para os dias de hoje.
Drummond: “Impossível compor uma poema a essa altura da evolução da humanidade./ Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia”.
Brecht: “Que tempos são esses em que/ Falar de árvores é quase um crime/ Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?”
Semanas atrás Fernanda Torres escreveu uma coluna-carta para Tati Bernardi na Folha de S. Paulo confessando que já não escrevia crônicas há semanas: “Eu também gostaria de escrever uma crônica, mas diante dos acontecimentos, o que resta é a inutilidade da análise.”
Na semana passada, me perguntava como escrever sobre uma esponja de lavar louça no meio dessa tragédia pan-brasileira em que despenhamos cloaca abaixo.
Dilema de cronista nesses tempos. Senta-se, digita a primeira tecla, começa a escrever e, antes de o texto deslanchar, abre uma janela com a mais nova má notícia do dia.
Inquinaram o frescor da palavra novidade. No lugar do novo, tomamos um susto atrás do outro.
Como sempre, criativo e original nos temas tão cotidianos. Em que pese a dura realidade dos dias, escancarada de forma melancólica, a arte da sua escrita é algo de esperançar. Parabéns!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Já leu?? Obrigado!
CurtirCurtir