O poético esmalta a membrana desta hora em que esquecemos do trabalho, do dinheiro e da morte.
Hoje é daqueles dias de escrever poema. Luzes fotografam árvores, cães riscam a película que reveste a tarde, pássaros pretos de bicos cor de madeira esmerilham o ar com asas de aço.
Dia pra poema, não pra crônica. Dia estacionário, suspenso. Dia pro cronista ficar no armário e chamar um poeta. Há tanta luz lá fora que tudo sai do lugar e o pobre cronista pode perder-se. Acostumado com o mundo rasteiro, assusta-o ver o mundo, planeta, cosmos baixar à sua frente, tomar conta do pedaço, espantar o homem e deixar à vista o invisível.
É necessário, então, procurar o tom. Ou pedir arrego e recorrer a um cronista dos bons, um Paulo Mendes Campos, por exemplo. Poeta e cronista, meio mineiro, meio carioca, decerto daria conta dessa franciscana paisagem do Pilarzinho, mezzo urbana, mezzo rural – a rios de distância dos luxuriosos cenários que baixavam em suas crônicas. PMC printava as linhas da paisagem carioca e as digitava em sua Remington (ou seria Olivetti?) assim: Um mar azul-Dufy vinha desmanchar-se contra a doce linha curva da praia de Copacabana. […] A cidade toda dava uma poderosa sensação de irrealidade e, entretanto, respirava uma estranha calma, uma perfeição tocada de tranquilidade absoluta“. Talvez para esse punhado de bracatingas, marias-sem-vergonha, bem-te-vis e animais envernizados pelo sol num arraial curitibano não coubesse um Dufy. Melhor um Bonadei, de um lirismo menos efusivo, mais próximo a um quintal pendurado num bairro perdido no espaço, no tempo e na história.

Primeiro livro de crônicas publicado por Paulo Mendes Campos.
Seja como for, com ou sem PMC, é preciso ir em frente. Ou melhor, em círculos, pois a tarde lírica basta a si mesma. Cessa tudo. O poético esmalta a membrana desta hora em que esquecemos do trabalho, do dinheiro e da morte.
Por falar nisso, em trabalho, dinheiro e morte, recorramos de novo, lírica leitora, lírico leitor, a PMC: “[…] esta pobre e arrogante criatura humana […] arrumada odiosamente numa sociedade dividida em castas, uma sociedade sanguessuga, uma sociedade engenhosamente arquitetada para triturar as classes de baixo a fim de transformar a dolorosa matéria-prima em petróleo aço, eletricidade, veículos, aparelhos domésticos, tecidos, alimentos”. Esse trecho está espetado na mais-que-crônica Porque bebemos tanto assim, de 1961.
E assim esse filme sobrerreal e tranquilo começa a expirar. Seja porque o espectador perde a capacidade de admirá-lo, seja porque sente o bafo espesso da atmosfera da pandemia retornar. Envenenado pelos mais de mil brasileiros mortos hoje, o fim deste texto poderia adotar um tom pomposo, entoar um dó de peito, lascar um dobre de sinos, de carrilhão, para tentar emendar bacharelescamente o que não se pode emendar. Não há liga que solde lugar tão lindo a tanta sombra, grilhão e violência. Sem poder sair à francesa, sem tenores e sinos de bronze, e admitindo que o lugar da crônica é mais embaixo, despertemos e encaremos este país cheio de luz, miséria, dramas e tristeza.*
* Trecho decalcado do fim da crônica No Domingo de Manhã, de Paulo Mendes Campos, publicada em 1954.
** A imagem que encabeça esta crônica é uma reprodução de quadro de Aldo Bonadei, extraída daqui: PAISAGEM com Troncos de Árvores. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020.
“Hoje é daqueles dias de escrever poema.
Luzes fotografam árvores,
cães riscam a película que reveste a tarde,
pássaros pretos de bicos cor de madeira esmerilham o ar com asas de aço.
Dia pra poema, não pra crônica.
Dia estacionário, suspenso.
Dia pro cronista ficar no armário e chamar um poeta.
Há tanta luz lá fora que tudo sai do lugar e o pobre cronista pode perder-se.
Acostumado com o mundo rasteiro, assusta-o ver o mundo, planeta, cosmos baixar à sua frente, tomar conta do pedaço, espantar o homem e deixar à vista o invisível.
(…)
Seja como for, com ou sem PMC, é preciso ir em frente.
Ou melhor, em círculos, pois a tarde lírica basta a si mesma.
Cessa tudo.
O poético esmalta a membrana desta hora em que esquecemos do trabalho, do dinheiro e da morte.”
– Ih, eu acho que eu li um poema…
CurtirCurtido por 2 pessoas
O cronista é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que escreve crônica quando escreve poemas,,,, acho que é meio isso.
CurtirCurtido por 1 pessoa