Delírio brevíssimo

Em um fim de tarde, procurando me desconectar, dei por mim, imóvel, encarando-os.

Um balde e uma vassoura habitam-me a garagem. O primeiro serve água aos cachorros; a outra corre com folhas e poeira. De lata, o balde tem ar de relíquia; de palha, a vassoura espiga elegância. Há algo de Sancho Pança e Dom Quixote dormindo neles.

O sancho de metal lembra-me as bacias d’água que eram meu Atlântico e Pacifico de quintal. A vassoura colava noutra paragem. Bailava nos bosques do Banespa, meu clube de infância, em São Paulo. A coreografia era dirigida pelos funcionários, distribuídos por um palco de pó, saibro e árvores, onde erguiam-se pirâmides de folhas secas.

O balde levou pancadas. Amassado, encara-me avisando que por ele passaram braços e mãos de latoeiro. Diferente do plástico, a lata cinza conversa com as coisas: repica quando batem nela; deforma-se quando a espancam; e esfria ou esquenta conforme o clima. Sem neutralidade, narra suas vicissitudes.

A vassoura respira. O ar atravessa-lhe as fibras amareladas, enquanto os resíduos param-lhe na saia de palha. O cabo da madeira que lhe apruma ganhou um tom cobre graças ao relento. Como um vegetal, deixa-se inscrever pelo tempo.

Homem Caminhando (1960), Alberto Giacommetti/Tate Modern

Parecem totens. Marcos de um mundo que vai se despedindo, de um tempo mais vagaroso e áspero. Pra fugir de links, posts e laives que entopem o dia, busco a companhia dos dois.

Num fim de tarde, procurando me desconectar, dei por mim, imóvel, encarando-os, balde e vassoura. Não sei explicar como, mas se aproximaram, me pegaram — um pelas pernas e outro pelo cangote — e me puseram a girar. Com muita força.

Quando pararam me vi dentro de uma foto de infância.

Com um fiapo de anos, me arrasto, só, seminu, pelo chão de caco vermelho da casa de meu pais. Engatinho rumo ao portão da rua. Sorrio. Nos olhos, cintila o desejo de escapulir. Mas tudo está imóvel, imantado no acetato. Tento mexer-me, não saio do lugar. Tudo que almejo — rua, pessoas, moinhos de vento — não chegam a foto, nem chego a eles. Um barulho forte de metal me assusta e, espantado, me vejo na garagem de novo.

Tropeçara na vassoura, derrubara o balde.

Apanho o rodo para puxar a água, encaro meus sancho e quixote de quintal, e pergunto-lhes: — O que queria aquele menino?

Aventuras, ouço a arrastada voz da vassoura.

No fim, ficamos só com as pancadas que levamos, rebate o balde.

Não sei se gosto das respostas. Sei que a aventura continua, a despeito das pancadas.

5 comentários em “Delírio brevíssimo

  1. Nossa, Eugênio, que crônica. Viajei. Tenho uma sensação parecida com a sua, refugiando das laives, no quintal dos meus pais, só que tropeçando num regador de plástico e sem a erudição da sua arte. Adorei 👏👏👏

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  2. “O chão de caco vermelho” é uma memória geracional, evoca uma infância que parece não existir mais.
    Os mergulhos no tempo, ainda mais nestes dias de quietude, são mais e mais frequentes.
    Muito bom, Genão. Tomara que haja água, balde e vassoura pra limpar todo o lodo do presente. Grande abraço.

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