para Albano Miranda, quem me apresentou o cavalo de Alexandre
O cavalo caiu no telhado. Deu no jornal. Aconteceu em Aricanduva, cidade que luta pra chegar aos 5 mil habitantes no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O telhado em questão é o da sede da prefeitura; o equino, um habitué do pasto vizinho ao prédio da comarca mineira.
A notícia relata que entre a pastagem e o imóvel do Executivo local havia uma cerca e um rio. Não explica como do capinzal o herbívoro despencara no telhado.
Insatisfeito com a história, cliquei no vídeo disponível na matéria. Aqui do meu assento no Pilarzinho testemunhei o desconforto do cavalo. Duas patas do equídeo vararam a velha cobertura e sobraram suspensas no ar. Tratava-se de um muito simpático quadrúpede branco, sarapintado de marrom. Me pareceu ser uma égua, mas fio-me no juízo dos aricanduvenses, mais bem versados em alimárias do que eu.

Foto da reportagem Cavalo cai no telhado da Prefeitura de Aricanduva e parte da estrutura é danificada/ G1 - 25/02/2021 15h42
Mas discordo do o quê e do porquê do lide da notícia. Discordo que o simpático equino tenha despenhado na cobertura do edifício da prefeitura. Para isso precisaria ter vindo do alto, o que, pelas imagens, não me pareceu possível. Suspeito que o volumoso mamífero procurava um guichê naquele prédio da administração mineira junto ao qual pudesse solicitar o direito de frequentar diferentes pastagens da região, a fim de apreciar as variedades verdes nascidas para além das cercas onde o confinaram. Ou visava conquistar a prerrogativa de não ser mais cavalgado.
E por que pelo telhado? Desconfiara, creio, que pela porta da frente o barrariam. Então subiu, imaginando-se invisível, em busca de um atalho para o interior da sede municipal. Mas o edifício, tomado da obstinação em dificultar a vida dos cidadãos, não sustentou-lhe o projeto e cedeu de modo a denunciá-lo e gorar-lhe o ruminado intento.
Talvez quisesse imitar Bucéfalo, cavalo de Alexandre, o Grande, que voltou-se para o Direito, como conta Franz Kafka, em o Novo Advogado. O nosso equídeo aricanduvense, assim como o kafkiano, mergulhara nos compêndios legais e dispusera-se a dar cabo dos milênios de trabalho forçado a que ele e seus iguais vêm sendo submetidos.
Mas deu com os cascos no telhado. Continuará a ver o mesmo capim e “a sentir a [mesma] pressão da virilha sobre os flancos”.* Os humanos seguem maus, meu caro ruminante. Prosseguem maltratando a si mesmos e a tudo que os rodeia. Contudo, também eles subiram no telhado. No Telhado Final, onde restarão entalados, sem nada nem ninguém para içá-los de lá.
Aguarda, meu caro malhado.
Trecho de "O novo advogado", de Franz Kafka, traduzido por Modesto Carone.
Parabéns meu mano. Incrível como voce ainda mantém o bom humor. Abs Salloma Salomão Jovino da Silva. Artista/pesquisador
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Lembra da Ditadura? Havia raiva, havia resistência, havia humor. Mesma coisa agora, acho, Sem ignorar essa desgraça, não deixar que nos tirem a graça de viver, Tá osso, meu veio. Forte abraço
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