Ciclovias nunca antes pedaladas II

Sobranceiro, fornido e vermelho, crescia à frente o biarticulado do Guabirotuba. A coroa da roda traseira da bicicleta travara, só deu tempo pra saltar pro meio fio e ver o transatlântico urbano abrir em dois o ar gelado da manhã curitibana. Um grande susto, só que não. Na real, juntei dois eventos de uma pedalada recente em um só. A coroa da bike quebrou e o biarticulado passou, na boa, depois. Misturei tudo pra ilustrar meu pavor em pedalar entre esses ônibus e no meio dos quais me vi atirado num rolê até o Guabirotuba.

O medo tem uns treze anos, nasceu de um passeio que fiz logo que cheguei à capital paranaense. Um onibusão desses quase me cuspiu na grade da canaleta da República Argentina. Paulistano metido, achei que andar na canaleta era suave. Foi quando conheci o instante-canaleta-fatal: um biarticulado de cada lado e tu no meio. Senti o bafo do Goodzilla mecânico na nuca antes de me atirar na desnutrida calçada à margem da canaleta. Escapei por pouco, traumatizei forever.

Canaletas são vias especiais projetadas para coletivos. Equivalem aos corredores de ônibus paulistanos e ao BRT carioca. Com quatro pistas, reservam-se as duas centrais para os ônibus e as duas marginais pro resto — carros, caminhões, bikes, carrinheiros, cachorros etc. Com isso, os machimbombos vermelhões só param em pontos ou em sinaleiros, passando batido pelas ruas secundárias. Privilegiados, arrastam velozmente a carroceria tripartida por suas indianópolis urbanas. E os ciclistas aproveitam-se disso.

Mas toda essa história porque meu xamã ciclístico, o Tonico, me levou pra conhecer a praça do pôr do sol curitibana no Guabirotuba. O nome oficial é praça Abílio de Abreu e é conhecida por causa da Pista do Guabi, projetada pra descidas de rolimãs e afins. Saímos às dez, apostando no erro da previsão do tempo, que anunciava uma chuva colombiana para o meio-dia.

Guabirotuba — “muita guabiroba”, em tupi — é um bairro pequeno. Olhando no mapa, parece um trapézio. Espreme-se entre o Prado Velho, Jardim das Américas, Uberaba e Hauer. Do norte da cidade, o rio Belém desliza pro Sul, lambe parte da face norte do bairro e risca o limite do bairro a oeste. Ele corre a céu aberto e paralelo à linha verde, onde ao centro há uma canaleta. Tonico ameaçou invadi-la, mas usei o Belém como argumento: — Vamo margeando o rio, é mais bonito”. Ele cedeu, ladeamos o Belém e numa guinada à direita adentramos a terra das gabirobas.

Bairro do Guabirotuba pelo Google Maps

Logo chegamos à praça. Fica agarrada a um morrete. Na metade dela, descemos das magrelas e as empurramos até o cume. De tão íngreme, meu nariz dava uma rasante na grama, entre bitucas e camisinhas, jogadas ali por joãozinhos e marias movidos a corote. Ainda sobranceiros mas menos fornidos avistamos a cidade do alto. Sol não tinha, tinha era um horizonte cinza mordido por uma arcada de prédios. Tomamos água e embarcamos de volta.

Foi então que me vi na canaleta. Meu morubixaba de pedal não quis saber e só me restou segui-lo. Íamos rumo ao Jardim Botânico, e eu buscava abstrair do maquinismo biarticulado que nos espreitava. Deu-se então a quebra da coroa da roda traseira. A bicicleta virou uma fixa, o pedal passou a girar junto com a roda. Na descida, o problema. Meu espirituoso líder sugeriu erguer os pés do pedal e apoiá-los no garfo. Assim fui, como um piá de 15 anos. A essa altura, o biarticulado já havia passado e deixávamos pra trás o Jardim Botânico rumo ao Pilarzinho.

Enxutos, também deixamos pra trás os meteorologistas, que erraram em três horas a chegada da chuva.

2 comentários em “Ciclovias nunca antes pedaladas II

  1. Um tanto exagerada a impressão do biarticulado, não deixe sua mãe assustada. Você, como sempre, desenvolto pelos caminhos.

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