Ano corrente

Nao foi fácil pisar em 2022. Tipo tocar os pés pra sentir-lhe a temperatura. Seguir ou não seguir adiante? Tenso, pois quando tudo parecia que ia dar certo, arruinou. A ômicron fulminou com o barato da volta às ruas uma semana depois do réveillon, contaminando meio mundo literalmente e derrubando carnaval e afins.

Não bastasse isso, aconteceram uns lances sinistros nessa première de 2022 — pastor tomando tiro de eletricista nas horas vagas por causa de orçamento de dez reais não pago, amigos do pastor tacando fogo na casa do atirador, dono de quiosque matando a paulada um simpaticíssimo congolês que foi cobrar uma dívida, oficial da Marinha atirando em vizinho desarmado mas preto, achando que era ladrão, oito ou mais pessoas morrendo à bala pela polícia carioca na Vila Cruzeiro, norte da cidade, e haja gerúndio pra completar essa lista macabra. Na moral, acho que o Brasil atolou na metade do século XIX e a cada virada de ano só dá uma disfarçada na lama e um tapa no figurino.

Falando em figurino — mas em coisa boa –, quem andou dando show em janeiro e fevereiro foram as nuvens de verão. Alvíssimas ou escuras, compactas ou esgarçadas, aglomeradas ou fragmentadas, arrasaram no sólido céu azul da estação. Teve dia que flutuaram como águas-vivas, liquefazendo o céu em mar. Em outros, nuvens enormes estacionaram no horizonte enquanto noticiavam o pôr de sol com reflexos alaranjados e vermelhos em sua superfície. E bonitas de um tudo mostravam-se nos dias em que largavam uma longa ranhura alva no céu azul, como se tivessem sido pinceladas. Mas metiam medo também quando, cinza escuras e inchadas de água, baixavam nervosas sobre a cidade, trombeteando a tempestade iminente.

Por falar em tempestade, 2022 tá com cara, bigode, barba, peito e jeito de ser uma borrasca só. De ponta a ponta. Ano de eleição, duzentos anos da Independência, revisão da lei de cotas, cem anos da semana de 22, tudo isso regado a muita violência, a fake news e a conservadorismo doentio. Pisaremos em ovos nestes 300 e poucos dias pela frente, embora eu pense que seja melhor meter os dois pés no peito deste ano agourento, ou enfiar o pé na jaca de uma vez pra ver se mudamos algo além do figurino.

Mas sei que há muito mais coisa entre as nuvens e as pontas do pé do que rascunha essa pobre crônica. Por isso, sigo 2022, nas nuvens, curtindo o espetáculo, a despeito das trovoadas vindas dos jornais, pois, como dizia um escritor do século XIX e muito sabido, “é melhor cair das nuvens do que do terceiro andar”.

Que venha 2022!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s