Reencontrei Martim, elegante pescador de trocados da Travessa Nestor de Castro. Preto, espigado, guarda carros e motos numa tira de asfalto junto à trincheira que costura a Castro na Augusto Steinfeld. Cordato, penteia as palavras antes de soprá-las em nossos tímpanos. Conversa fácil, sorriso felino, temi por ele na pandemia.
Martim reclamou do preço das pensões do centro de Curitiba. Cinquenta reais o pernoite. O número de vagas a seus cuidados é baixo, cinco a seis, noves fora as motos. Pra dificultar, o Estar agora é digital. Com mais de dez lustros nas costas, sacou um celular me explicando que agora descola a féria do dia com ele. A hora de estacionamento de Curitiba está em três reais, Martin cobra cinco pelo trabalho de digitar e ficar de olho no cronômetro. Se for preciso, clica mais sessenta minutos pro cliente, que pode flanar mais um pouco pelas ruas da capital paranaense.
Se revi Martim, não reencontrei o coxa-branca polaco que zelava pelos carros entre a Alameda Dr. Muricy e a Ébano Pereira. Era leitor de policiais e proprietário de uma chácara em Campo Comprido (era o que me dizia, pelo menos). A ausência de dois incisivos na arcada dentária não o inibia. Mandava bem na piada e na ironia, senhor de ótima lábia. Plantara na calçada um guarda-sol e um banquinho de onde gerenciava os negócios e repousava as costelas moídas na pobreza. Torço pra que ele tenha fisgado algum tipo de aposentadoria e que a Covid-19 tenha passado longe dele.
Há quem os chame de flanelinhas. Forma pejorativa de tratá-los. O verbete da Wikipedia descreve-os como aquele que “se utiliza de coação para conseguir remuneração pelos serviços prestados no estacionamento, na limpeza ou na proteção de um veículo automóvel”. Ainda acrescenta que, em Portugal, costumam ser ex-alcoólatras ou toxicodependentes. Quanto a esse último aspecto não me parece serem os únicos com esses atributos no currículo. E a coação é uma discussão antiga. Exceção feita aos frilas que aparecem em jogos de futebol e grandes eventos, nunca testemunhei um camarada desses constranger alguém. Menos ainda o Martim, que desliza com muita lhaneza as finíssimas solas de seus sapatos das 9h às 18h no asfalto da capital mais fria do Brasil.
Não bastasse isso, existe uma Liga Nacional Antiflanelinha, tocada por gente muito séria e cheia de coisas importantes pra fazer. Registram, exultantes, em um blog, todas as ações contra os guardadores, no Brasil. Há cidades que proíbem suas atividades. Parece que a moderna e planejada Belo Horizonte é uma delas. Há coisa pior. Há quem defenda ações extremas contra os guardadores, como estacioná-los de vez no além. Mas alerto a essa gente generosa que esses trabalhadores estão por aqui desde a década de 1930, segundo a socióloga Franciele Muller Prado. E há uma lei de 1975 que regulamenta a profissão, embora corra perigo, pois até isso o atual governo pretende levar pro desmanche. Segundo a reportagem “Posso olhar o carro?”, de Daniel Lisboa, a medida provisória 905 de 2019, que extingue a profissão, poderá virar lei no próximo 20 de abril.
Não sei se Martim está a par disso. Sei que a indiferença e o preconceito contra ele sempre estiveram por aí, com ou sem lei. Mas aposto que seguirá zelando por nossos carros na rua que escolheu.
* Na foto, Martim mostra sua elegância na rua em que trabalha (Foto minha).