O céu que nos dirige

O Primavera ia deixando o ponto pra trás. Parou bruto diante do braço esticado no ar. Abriu a porta, as pernas subiram ligeiras os degraus, a máscara agarrou-se do jeito que pôde ao rosto e um “obrigado!” abafado mal alcançou os ouvidos do motorista, que já engatava a primeira pra sair.

O Pilarzinho ia perdendo terreno à medida que o ônibus comia o asfalto da Amauri Lange rumo ao Centro de Curitiba. À esquerda, quatro bancos solitários enfileiravam-se na lateral convidando os passageiros mais antissociais a se sentar. Ou os mais apavorados com a Covid-19, como eu.

Descansando da corrida para frear o Primavera, girei o nariz para janela, mirando os olhos nas fachadas das casas e prédios da Hugo Simas. Sim, prédios, havia dois logo na primeira curva, alertando a polacada que o bairro pacato está sob ataque. Duas curvas à frente, meu pescoço deu um lopping de 180 graus e me pôs diante de um fogaréu.

No céu.

Pulei para o outro lado do machibombo pra espiar aquilo mais de perto. No banco em cima dos pneus, mais alto, colei as retinas naquele braseiro de nuvens laranja, rosa e lilás. O azul que carregara o céu até aquela hora desmanchava-se em chamas. O ar em combustão explodia o ritmo do dia, tragando-o num mar avermelhado. Isso eu via, porém, em fragmentos, pois volta e meia letreiros de lojas e afins barravam-me a visão. Um sinaleiro grudou a borracha do busão no asfalto bem em frente a uma farmácia cuja fachada cuspia uma luz hospitalar. Sinal verde, céu vermelho de novo, brigando com as fachadas e prédios da Nilo Peçanha, por onde o Primavera já avançara. Decidi então descer pra ver melhor aquele fim de dia. O próximo ponto dava na Praça do Gaúcho. Foi ali mesmo.

A praça deixa a cidade respirar interrompendo a carreira de edifícios ao abrir-se como uma grande calçada entre a Peçanha e a Benvindo Valente. Ali, emendam-se as duas ruas com a Trajano Reis, a algumas quadras do Centro. Somem, então, os letreiros e as fachadas, ganha-se o horizonte, cujos cotovelos apoiam-se no muro do cemitério São Francisco de Paula. No miolo da praça, pulsa a pista de skate onde voam piás e gurias em suas pranchas. As sombras dos túmulos do cemitério Municipal desenham um skyline melancólico no céu arrepiado de nuvens vermelhas e laranja. A silhueta de um anjo de mármore aponta para o centro da cidade

Aos poucos, a brasa adormece, o violeta vem tramando o azul escuro que encampará a noite. A sensação de desamparo dissolve-se sob as lâmpadas da Barão de Antonina. Sinto-me girando uma catraca imaginária, outra parada se avizinha para esta sexta-feira. Sigo minhas pernas.


* Cemitério São Francisco de Paula (foto minha)

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