Já deixou escapar uma frase ou uma ideia porque não tinha como anotá-la? No chuveiro, vendo-a escorrer junto à espuma do sabonete; no ponto, na hora que o ônibus surge acelerado na esquina; no carro, quando o sinaleiro abre sem dar tempo pra anotar a pequena obra-prima. O título de um texto, o começo de uma crônica, uma réplica ao gerente do banco, tudo indo pro brejo.
Há anotadores compulsivos, não admitem ver suas ideias afundarem no pântano do esquecimento. Um deles era o jornalista Austregésilo de Athayde. Em 1924, guiou o físico Albert Einstein pelos becos e praias no Rio de Janeiro, sem largar um bloco de notas. O físico perguntou-lhe o que anotava, o jornalista respondeu-lhe algo como “toda boa ideia que me vem à cabeça”, e replicou “E você, não anota nada?” Meio esnobe, o Nobel alemão teria respondido “Não! Só tive uma ideia na vida”. Talvez seja uma anedota tardia espalhada por algum desafeto do imortal, pois Austregésilo presidiu a Academia Brasileira de Letras por trinta e quatro anos (1959-1993) — uma espécie de Alfredo Stroessner das Letras (1954-1989).
Não carrego blocos, nem tantas ideias, muito menos brilhantes, mas vez ou outra me salta, como um pop-up, uma frase boa. Dia desses segurei uma com o gravador do celular: “A manhã abre a boca, uma baba branca deposita-se sobre os prédios do Centro de Curitiba”. Seriam versos ou parte de uma descrição de um conto ou crônica? Por enquanto fica aqui, fermentando. Do mesmo gênero, mas sem registro, saí-me com algo assim sobre a luz deste outono: “luz doce, apazigua a paisagem, lambendo-a como a vaca seu bezerro”. Havia uma continuidade de que me esqueci. Viajava de ônibus e ela veio enquanto via a paisagem sendo lambida pela luz de maio.
E há os outros, suas frases e ideias. Ouvi uma da boca veloz de um ciclista na Inácio Lustosa: “Você derretendo na minha mente”. Registrada no celular, em casa, pensei se o velocista não estava cantando. Joguei a frase na internet e encontrei um verso parecido, do Lineker, em “Baby 95”: “Tô derretendo na tua frente”. Seja como for, gostei da versão minha e do pedaleiro. Serve a uma personagem que está se livrando da imagem de alguém ou a imagem desse alguém se desfazendo na mente da personagem. Ou mesmo fundi-la numa crônica mudando alguma coisa. Fica aqui em stand-by.
E há as que anotamos nos livros. Risco com lápis, às vezes dobro a orelha da página, pra marcar uma passagem. Registradas, mas raramente retomadas. Quem sabe relembradas só vinte, cinquenta anos depois por outro leitor. Salvo duas agora, como esta do portenho Ricardo Piglia: “É meio-dia, na rua a escuridão esmaga a fachada das casas enquanto a chuva começa a cair com violência […]”. Anotei porque é uma frase-aula de como expressar um cenário noturno opressivo. Outra aula de frase, outro argentino, Robert Arlt: “A neblina encaixava no beco um cubo no qual reverberavam tristemente pavios dos lampiões a querosene”, não sei vocês, pra mim, nesta descrição, a neblina se acotovela na geometria da cidade, quase materializando o sentido da angústia que se aperta na chama triste dos pavios debilitados.
No fim das contas, essa crônica virou uma grande anotação. Fragmentada, com vais e vens, sobes e desces, fomes e comes, como são as coisas na real. Fotografamos, escrevemos, remendamos esses cacos todos por algum motivo, que essa crônica não vai responder. Outros já o fizeram, outros viram a reposta ir pro brejo.
* Obra tiscornia-23-ENG, da uruguaia Ana Tiscornia. Ver https://norafisch.com/en/muestras/ana-tiscornia-2/
E as ideias q vc tem numa acordadinha na madrugada e que parecem geniais mas não resistem à luz da manhã?
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está é clássica, e clássico o meu esquecimento. Tem uma crônica minha, Espoja velha, que eu tive de levantar pra anotar a ideia porque se não fizesse isso eu a perderia, como vc disse, de manhã. Ideia boba, mas que deu o nó que faltava ao texto.
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