Um truque para começar uma crônica é falar do clima. Ainda mais em Curitiba. “Ai, que frio!”, desabafa o cronista, batendo o queixo, esfregando as mãos, abotoando o casaco até o gorgomilo, colando o cachecol no pescoço. Daí inicia com o bafo gelado do El Niño, desce para os efeitos deletérios na saúde, os dramas respiratórios, a sombra pegajosa da Covid, e reage com um salve às praias cálidas do Nordeste. O gelo está rompido, a crônica começa.
Na Era do Gelo o assunto ja estava na pauta. Havia uns animalões peludos sobre quem, no escuro das cavernas, arranhava-se uma prosa lascada: “essa pelagem é mais quente”, “daquele é maior,” “do outro dura mais”, “é mais bonita a outra”. Parte dessa conversa se passou na fase raiz da Era Glacial, a sexta, segundo me informei, e sob a qual ainda vivemos. Ai que frio! Só que não. Em cada Era dessas, existe um recreio quente, uns dez mil anos de calor a cada cem mil anos. E estamos nesse período, o que acho bom esconder dos moradores de Curitiba, podem sentir-se ofendidos ou se desesperarem.
E esse papo emendou-se aos conselhos paternos e maternos — “bota um casaco, guri”, “coloca uma meia, menina, teus pés vão congelar” –, às conversas de elevador, à falta de assunto e aos feeds, onde se desenrola em fotos, selfies, emojis azuis, sugestões de bebidas antifrio, roupas, noves fora a contenda encarniçada entre adoradores e detratores do frio. Virou um tema caliente no mundo virtual
No presencial, por quase duas semanas, nuvens paquidérmicas ocuparam o céu da capital paranaense, sufocando a paisagem de cinza. Gotas geladas caíram perdulariamente pela cidade, umedecendo ossos e pensamento. Quando este texto estiver no ar, o céu deverá estar limpo e a temperatura no pé, bracejando para não cair a zero. Isso a uns dez dias antes do inverno. Ai que frio!
E nesse clima saí pra ir à farmácia. Às seis da tarde, uma graxa úmida substituíra o cinza do dia. Espectros vagavam pelas calçadas vestindo longos cobertores. Magrelos, pareciam as figuras de Dante e Virgilio circulando pelo Inferno. Ao entrar na drogaria, tomo um choque da luz fluorescente, e procuro o remédio para o meu mal. Saio e encontro um sem-teto embaixo da marquise da Caixa Econômica da Mateus Leme. Pede-me uma moeda, retruco com uma nota. Olhos acelerados, agradece me apresentando a companheira, uma simpática cadela preta e branca que se abriga debaixo do cobertor.
Esqueci-lhes os nomes.
* Esta crônica decalca, e rebaixa, uma outra, escrita por Machado de Assis, em 01 de novembro de 1877. A imagem que ilustra o texto é uma reprodução de Sinfonia em branco, de Arcângelo Ianelli, 1973, Têmpera sobre tela, 200,4 x 150,5 cm, Prêmio Museu de Arte Moderna de São Paulo – Panorama 1973