Próximo! Próximo!

“Não dê esmolas para pedintes nem compre de ambulantes nos trens do Metrô”, repete a locutora da Linha Amarela. A voz cava um sulco nos tímpanos dos passageiros. Na Linha Verde, transfiro alguns trocados para um desempregado com a filha no colo. Ligeiras, duas violinistas tocam clássicos no vagão, arrematam com Asa Branca e levam as moedas que me restam. Fico devendo pro dançarino de break, cuja cabeça parafusa o piso do vagão, enquanto desembarco na Chácara Klabin Segall, rumo à Linha Lilás.

O destino é a estação Borba Gato, estátua famosa, da qual fui vizinho na infância, em São Paulo. Cimentada num canteiro da avenida Santo Amaro, guarda as marcas do colar de fogo que ganhou recentemente do Galo e companhia. No joelho, um buraco revela ser oca por dentro, presságio, quem sabe, de que esse passeio ao passado pode ser uma furada. Com a cumplicidade do metrô, que escavou uma estação a um quarteirão da rua onde morei, rodo pelo bairro em que nasci, duas ou três décadas depois de ter pisado os pés por lá pela última vez.

Minha casa foi retalhada em duas, metade rosa, metade cinza presídio. Uma clínica ou estúdio ou ateliê de depilação a laser ombreia com uma fachada sinistra, com pinta de negócio ilegal. A rua, née 13 de maio, hoje Cancioneiro de Évora, está desfigurada. Reconheço três imóveis: o primeiro guarda os tijolos assentados do mesmo modo há quase sessenta anos; o segundo, repintado, também de rosa, decora a esquina, solitário em meio ao caos; o último, onde morava o desabrido delegado Santana, mantém o mesmo velho muro e segue térrea. Permanecem ainda a feira livre, no mesmo sábado de décadas atrás, a banca de jornal na esquina, aberta e cerrada de segunda a sábado pelo Wagner e a esposa, e as vilinhas, só que agora guardadas por indescritíveis portões de alumínio ou PVC. No mais, só destruição — material e estética.

“Fazemos os sonhos tocarem o chão, ganharem vida e forma”, blefa a frase bem pintada no longo cercado de alumínio preto que consome quase todo o primeiro quarteirão da Cancioneiro de Évora. Por trás da cerca fashion, terra arrasada. Por baixo, umas dez casas foram ao chão. Com sonho, pó e muito entulho. Um cemitério de escombros alcança a Joaquim Guarani, rua paralela, cujo nome eu confundia metonímica e metricamente com José de Alencar, autor que assombrava minhas aulas na década de 1970. De concreto, era rua onde morava o Rivelino, a quem víamos vez ou outra cuidando dos seus curiós.

E as placas não paravam de falar naquele campo de Marte suburbano. Em algumas, era papo reto, como a tabuleta vintage da demolidora J. Correia oferecendo seus serviços. Outra, gringa, ostentava a pergunta “What’s next?” num cercado gourmet. Muita poeira se enganchava nos raios do sol de inverno. Era hora de voltar, sinalizavam minhas pernas ao me arrastarem para a estação do Metrô. Sem dó do passado, o presente não dá esmolas, enterra as quimeras e empurra-nos pra frente. “Próximo! Próximo!”.

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