É verdade este bilete

O dia não está instagramável. Flopou geral. Enfiou-se numa geladeira cósmica com a gente tudo dentro. Cenário e figurinos trabalhados no cinza chumbo, cinza melancolia, cinza depressão. Opa, freezando, antes de isso acabar numa urna funerária. É hora de puxar outro neologismo das entrelinhas, e photoshopar o ambiente pra seguir o dia e biscoitar algo com esta crônica

Fica mec, fada sensata, este texto sextou depois de eu ter encontrado um bilhete, dentro de um livro, na Biblioteca Pública de Curitiba. Uma lista de dezessete e-palavras, escritas à mão, em duas colunas. Daí o estilo empregado aqui.

A caligrafia do bilhete está bem cuidada. As letras das webpalavras passeiam legíveis, arredondadas, bem amarradas umas nas outras. Na primeira coluna, elas avançam numa grafia paciente, firme sobre as fibras do bilhete. Mas há um corre na segunda, os grafemas se inclinam e os traços mal beliscam o papelucho. Mesma pressa que fez a autora esquecê-lo no miolo do volume que consultava.

Sem querer ser fanfiqueiro, o papelzinho tem cara de tarefa escolar. Professor ou professora pediu 15 ou 20 neologismos. A estudante estava na hora do almoço foi até o salão dos livros de literatura, apanhou alguns volumes nas estantes, sentou-se na longa mesa de madeira e deu start na pesquisa. Não encontrou nada nos suportes de papel, foi pro celular e vasculhou o factotum movido a litio. Não tinha caderno, prova-o a mídia humilde, e talvez tenha emprestado a caneta, uma esferográfica preta. Começou cuidadosa, com a palavra falsiane e arrematou, ligeira, com ranço, nas últimas migalhas da hora do almoço, imagino. Lacrou o que sentia antes de retomar o expediente. E divou na ortografia em meio ao bonde de cês-cedilhas, esses, dois esses, zês e xis que cruzam o bilhete e derrubam muito marinheiro velho por aí.

A essa altura não sei se tunelei forte. É difícil stalkear um papelucho. Parada antiga, tá mais para um olho de Poirot, um cérebro de Sherlock Holmes, acostumados com esses pequenos pedaços de celulose trançada e banhada na cola.

— Mas voce não se perguntou por que esqueceram o bilhete dentro do livro? — pingou do nada uma voz com sotaque belga.

Isso cheira a trolagem. Ou agora os algoritmos leem pensamento? Mas a pergunta não deixa de ser boa. Feito um bom deboísta, apostei no mero esquecimento, distração mesmo, nada que possa transbordar para um romance policial.

— Tsc, tsc, tsc, tsc — ouço um quarteto onomatopaico arranhar o ar com acento britânico. A voz faz uma longa digressão, da qual apanho um ou outro sentido com meu vexatório conhecimento do inglês. Algo como uma charada, código, deixado ali para um interlocutor específico, ligado a uma trama linguística ilegal. Naquele anglo-saxão empolado, queria me dizer algo sem me entregar o spoiler. Teria que ler o romance todo. Achei essa história poser demais prum papelinho perdido numa tímida cidade do hemisfério sul.

Acho que tá na hora de dar quiti nesta história. Como dizem os portugueses, o rabo é o pior de esfolar, terminar é a parte mais difícil. Quanto a você, leitor e leitora, se essa bota estiver difícil de descalçar, apanha o espertofone, esse palavrório webnovo está todo lá, a todo vapor, pra dar cabo dessa crônica com uma expressão forjada nos idos da Revolução Industrial e devolver este cronista pro século em que ele nasceu.

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