– A família dele é religiosa, não sei se vou segurar essa!
A jovem de mechas assimétricas balança o braço tatuado enquanto dá a ficha do novo namorado para a amiga ruiva no vigésimo andar do Tijucas. O drama amoroso se comprime no pequeno café 271, quase escapando pela grande janela que projeta a paisagem do centro de Curitiba. Lá embaixo, à esquerda, a torre da Igreja do Rosário dos Pretos ignora a conversa, dividida entre o silêncio dos escravos enterrados no subsolo e o burburinho do Largo da Ordem.
Do nada, um Quero-Quero começa a gritar, à noite, na frente do nosso quarto, no Pilarzinho. O pássaro voava em semicírculos, berrando, grasnando, berrando, grasnando. “Os gatos apanharam um filhote, só pode ser”, pensamos. Não era a primeira vez. Protegido por um guarda-chuva e um capacete de bicicleta, saí pro quintal. Esse herdeiro dos dinossauros é brabo, vai pra cima quando mexem com seus pequenos, bica bem, além de ter uma unha-espinho no centro da articulação superior das asas. Não estou com pressa pra morrer, nem de ser fatiado a bicadas por uma mãe espoliada dos filhotes.
— Nao sei se conto se sou professora de Pole Dance. A mãe já sabe, os pais e os irmãos, não. Domingo vou almoçar lá.
— E ele, segura sua onda? — cortou, a ruiva.
A professora adocicou o boy, sem absolvê-lo. Trabalhava, ajudava a família, daora, mas bebia na mesma fonte religiosa dos pais. Rolou um pingue-pongue ligeiro entre elas, com muitas expressões em inglês incompreensíveis para mim. Mas o enrosco estava claro, uma mulher empoderada a fim de um homem preso à tradição.
Não encontrei o filhote. Os felinos olhavam pra mim, inocentes. Estava escuro, céu encoberto, enxergava-se pouco. O pássaro continuava a voar no mesmo lugar, como um drone de carne e pena. Talvez estivesse preso a um fio, mas não entendia bem como. Aos poucos veio o silêncio, e dormimos acompanhados do ronronar dos gatos.
Torcia para aquele amor dar certo, por mais que desacreditasse nele. Soquei pro fundo dos meus 86 quilos a vontade de apostrofar: “Moça! Não, não faz isso! Parte pra outra!”. Fiquei na minha, mesmo sem compreender por que ela se amarrava ao garoto. Falou ainda de um futuro Natal acompanhada daquela família de Deus. Senti um calafrio, confesso, mas não tinha como cortar esse lance. Paguei meu café e desci para as profundezas da rua XV, believing in love.
Na manhã seguinte, ouvi batidas de asas no terreno baldio ao lado de casa. Era a Quero-Quero (para estar viva até aquela hora só podia ser uma fêmea). Estava presa a um fio. Agora dava pra ver. Corri atrás de um vizinho mais familiarizado com a vida animal e tive sorte de encontrar o Germano. Ele chegou até o pássaro, pediu uma tesoura, e começou a cortar — com a ajuda da Adriana, minha mulher — a linha da pipa que havia freado o voo pássaro. O fio deu várias voltas na asa da pobrezinha, que aguardou pacientemente o final da operação. Tudo acabou bem, a Vanellus chilensis estava livre.
— Sempre é bom saber onde amarramos nosso esqueleto — ouvi alguém dizer.
— Cuidando para não cortar a asa alheia, acrescentei.
* Tirando os fios da Quero-Quero/ Foto mal tirada por mim.
Delícia cotidiana.
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pequenas coisas que salvam, beijos, mano
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