Um ciclista dispara pela ponte Notre-Dame cantando “Alegria era o que faltava em mim!” — uma pedinte me xinga em frente à Igreja Saint-Séverin a troco de dez centavos de euro, uma garota fala a um celular apoiado em uma caixa de papelão que ela carrega no Boulevard Saint-Michel, todos falam, olham, agarram-se a um portable em Paris, a fila para entrar na Saint-Chapelle tremula sob o calor do Hemisfério Norte, na vitrine do Mac Donald’s do Boulevard Saint-Germain meu rosto funde-se aos lábios do adolescente que suga uma última batata, o caixa senegalês do minimercado FranPrix devolve um “de nada” ao casal espanhol, uma menina tira selfie com o boy numa patinete onírica na rua Rivoli, uma velha madame parisiense denuncia a perseguição do dono de outra FranPrix com um cartaz erguido na fila do caixa, quantas FranPrix suporta uma Paris?, o buquinista me tenta com livros de Jarry, Arp, Kerouac, Céline, mas resisto com o Jogo da Amarelinha, do Cortázar, que levo na bolsa, com o meu francês estropiado e zero euro, o Sena tolera os bateaux mouches sobre suas velhas costelas, o Sena liberta o ar que os monumentos parisienses comprimem, o Sena está verde claro neste verão, o azinhavrado Leão de Belfort guarda o inferno debaixo das patas na Praça Denfert-Rochereau, não descemos às catacumbas, desceremos, mon amour?, Bah, Ué, Merci, Bonjour, Pardon, cantam as parisienses, os parisienses nas boulangeries que perfumam as ruas da cidade, escritórios imobiliários espocam nas esquinas do quinto, do sétimo, do nono, do décimo sétimo arrondissement, Sáfia não consegue pagar mais o aluguel e se aninhou sob uma marquise do Boulevard Saint-Germain, Helena espera de cócoras choverem centavos de euros no seu copo da Starbuck no Boulevard Port-Royal, os feirantes d’Aligre derrubam os preços: ãnerô!, ãnerô!, no miolo da praça da Bastilha um obelisco hiperbólico cala a Marselhesa, uma superprodução conclama por uma marcha pela paz na mesma praça, debaixo dos gazebos pode-se pintar o rosto, um hit pop abafa as sirenas das ambulâncias infatigáveis de Paris, na margem do Sena dezenas de barracas iglu acolhem desamparados, um par de tênis branquíssimo tosse pra fora de uma quechua azul escuro, tenda que acolheu mal um menino bom, bom menino extraviado na riquíssima ilê-de-France, um muçulmano na entrada de sua barraca lê o Corão em árabe, de costas para o Sena, de costas para a cidade de vidro que cintila ao leste, de costas para o faustoso prédio do Le Monde, da novíssima Biblioteca Nacional cercada por quatro tomos de vidro imensos, na quadra tipo Avenida Berrini paulistana, em cujas sombras o frio conspira e toca os ossos do pedestre despreparado na esquecida rua Paul Klee, mas a festiva Mouffetard traz o sol de volta, os prédios cerzidos a ferro e vidro ficam para trás, ressurgem os edifícios antigos, beges ou cor de palha, máximo seis, oito andares, da velha Paris, o Panteão regurgita gente, o Quartier Latin atira estudantes pelas ruelas iluminadas por salas de cinemas p’tit, um bar mais relaxado acolhe os órfãos de Godard com cartazes de filmes Nerd, o monsieur da casa de jazz nos contabiliza: mais dois turistas na casa de jazz para turistas, ouvimos nosso sotaque batendo nas calçadas, “do rio, a cidade sobe e desce feita de lobos abraçados”, canta Vallejo, cidade potente demais para um polaco velho do Pilarzinho, filho de um jovem cozido na brutalidade paulistana, e nem não vi ainda a Torre Eiffel, nem entrei no ingente palácio, castelo, edifício, bâtiment do Museu do Louvre, perto do qual fomos tragados pela avenida do Opéra, num cortejo de táxis pretos, patinetes e bikes eletrizantes, escoltados, escoltadas por edifícios argentários — “Uma esperança vaga eu já encontrei”, canto alto a sequência dos versos do Cartola para o biker brasil da ponte Notre-Dame, que não me ouve, que não me ouviu. Ficaremos sem sua história.
* Imagem: Leão de Belfort, monumento da praça Denfert-Rochereau/Foto minha.