Ele queria conversar. O livro na cesta do assento da frente foi pretexto. Me pediu pra ler. Estava em português. Desolé. Mas lembrei de um em francês na bolsa. Mostrei pra ele. Viu o título, Noirs dans les camps nazis, achou pesado — sem deixar, no entanto, de expressar sua repulsa aos nazistas e ao presidente brasileiro. Daí em diante nosso papo decolou.
Joel Guibet é um senhor entre setenta e oitenta anos. Viajava da França para o Brasil com a esposa, a simpaticíssima Annick. Felizes da vida, iam rever o filho, conhecer os netos — três, se entendi bem. Vinham de Locmaria Plozane, cidadezinha bretã debruçada no mar, o mesmo onde flutua a Grã-Bretanha. Leio na Wikipédia que os bretões foram corridos da ilha pelos anglo-saxões e se instalaram na bela franja de mar a oeste da França. (Não sei bem se uma parte voltou pra ilha, por causa do nome, mas parei por aqui.) Os Guibet têm um vinhedo e me convidaram pra conhecê-lo. “Lá se come e se bebe muito, e bem”, disse o Joël, no seu francês empedrado, dificílimo de entender.
Confinados doze horas naquela grande caneta voadora que é o Jumbo da Air France, trocamos muita informação, intercalamos boas gargalhadas, brindamos várias vezes, de café a champanhe. Tomei pela primeira vez licor de Poire. Generoso, Joël dividiu comigo uma garrafinha do destilado de pera que havia ganhado da comissária. A alegria dele dava pra levar aquele jumbo até a Terra do Fogo.
O casal me deu um cartão simpaticíssimo, com seus nome, sobrenome e endereço. Em tons claros, azul, rosa e verde, o papelucho traz um vasinho de flor solto numa plataforma de nuvens. O nome da rua — com rima, aliteração e assonância — promete um bom lugar: rue du Chateau d’eau, rua da Torre d’água. Isso se confirmou pelas fotos do celular da Annick, que expôs uma Bretanha digital no quadrilátero minúsculo dos nossos assentos. Naquele francês áspero e consonantal, Joël desfiava a boa vida do oeste francês, torrão fornido pelas águas da chuva e do mar, e dos frutos gerados por elas. – França não é Paris, disse, sem deixar de tirar uma casquinha dos habitantes da capital, descrevendo-os como arrogantes. Isso eu entendi pelo gesto que ele fez, tipo nariz empinado. Incansável, não recuava diante da minha cara de analfabeto franco-bretão e se valia dos recursos comunicacionais à mão.
Levantei várias vezes para espantar a dor nas articulações. Joël permanecia colado ao assento. Foi apenas uma vez ao banheiro. Por um momento, invejei-lhe a bexiga e o esqueleto, mas Annick contou que ele sofria de uma artrite nos joelhos. Levei-lhe café, numa sofrível retribuição à gentileza que espalhava naquela esferográfica voadora. Carregava com ele o amor que duplica pai em filhos. Dali a pouco estaria em Botafogo, veria o Pão de Açúcar, o morro da Urca, conheceria a paisagem admirada por Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio. Há grandes chances de a felicidade dele continuar rebrotando.
Aqui, na Não-Bretanha, tá osso. Que seja, com esse novo amigo na bagagem, trago o ar do Brasil novamente. E agora é fazer como escreveu há muito tempo um poeta peruano radicado em Paris, “botar um passarinho em plena nuca do malvado”, e seguir.
Pensa numa coisa linda… amo ler suas crônicas. Adoro esse ar leve e as palavras que fluem e voam como a caneta entre as nuvens.
Beijo meu amigo… e vamos colocar o passarinho sobre a nuca.
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Se vc gostou, leitora fina, posso ter a esperança de escrever algo que preste!
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