Peter entrava pela cozinha vindo do quintal, sentava-se, bufava, discursava para o nada, levantava-se, varava a porta que dava pro corredor, seguia em frente, atravessava a sala ao som de “O Que Será?”, do Chico Buarque, baixava na garagem e saía para rua 13 de maio onde eu morava em São Paulo, na década de setenta.
— Onde ele vai, pai?
— Ele volta, não se preocupe.
Voltava mesmo. Diziam que era esquizofrênico. Grande, rosto quadrado, queixo de super-herói, pinta de escandinavo, antítese do meu velho, homem miúdo, direito e de fala mansa, que acolhia o amigo viquingue, em geral nos fins de semana. Imaginava o Peter queimando por dentro, sem como descansar.
Encerrado o almoço, Joseph Albert Van Sebroeck dava uma longa baforada no double corona recém-aceso. Sentava-se na cabeceira da mesa, na cadeira onde meu pai costumava ficar. Era forte, corpulento. Padrinho da minha irmã caçula, para nós era o Jôs. Amigo belga dos meus pais, sotaque carregado, vestia bermuda, suspensórios e meia três quarto inacreditáveis. Brincalhão, costumava apertar-me o braço exibindo sua potência flamenga. Jôs morava em Ilhabela, litoral de São Paulo. Em suas terras ficava a Toca, cachoeira famosa na época. Mais tarde me perguntei como minha mãe suportava, asmática, a nuvem de tabaco caribenho soprada por pulmões flandrinos ocupando a cozinha.
Madrinha da minha irmã mais velha, Michele dirigia um carro adaptado, era suíça e boníssima. Sem sotaque, mais brasileira que eu, dava os melhores presentes. Invejava-os, pouco se podia fazer, porém. Não que a minha madrinha não fosse generosa, mas não se comparava àquela embaixadora do bem na Terra. Só adultos descobrimos que tinha uma companheira, nos anos noventa, o que só aumentou os pontos dela na lista de amigos e amigas de meus pais. A unica coisa que não fez bem foi morrer cedo.
Meu pai participou da Juventude Operária Católica, JOC, militava com religiosos franceses e belgas. Isso explica a turma sindicalista, flamenga e francófona que frequentava nossa casa. Uma turma avessa às barbaridades do rei Leopoldo e seguidores. E ainda tinha meu padrinho belga, Jacques, que vi poucas vezes. Lembro-me mais do seu filho, que ficou uma temporada em casa, entupindo-se de bananas e pilotando uma geladeira velha que transformara em automóvel. Nesse time ainda jogava o Homero, que era brasileiro e sindicalista como o estranho Peter. Mineiro, correu pra São Paulo porque a coisa ficou ruim pra ele na terra de Magalhães Pinto. Era alto, voz grossa, um bigode colossal, contrapontos à sua alma de esquilo.
Enquanto a maioria deles lutava contra a ditadura militar, vivendo à flor da pele, eu, que sabia pouco ou quase nada de tudo, adorava o desgoverno que traziam pra casa.
* Imagem: ZERO Cruzeiro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra61688/zero-cruzeiro> Acesso em: 20 mar.2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7