De zigue-zague em zigue-zague chega-se aonde?

para Orides Fontela e Peter

   Um polaco velho cresceu vindo da esquina. Balançando cabeça e braços, avançou na direção do ponto de ônibus, não parou, passou, comeu uns metros de calçada, voltou, murmurou algo, pisou forte até a esquina de onde surgiu, retornou, refez o caminho, assim até o Bracatinga chegar. Uma máscara preta lhe borrava o rosto e contrastava com os cabelos alvíssimos. O coletivo chegou, subimos juntos, ficou de pé, me sentei, se aquietou. Magro, magro, fez par com a barra de apoio do autocarro. Descemos no final da linha, no Centro, minhas pernas, farejando um lugar para almoçar, rumaram para praça Tiradentes, as dele o atiraram para o Largo da Ordem, que o engoliu.

Dei com o meu barril de ossos no Armazém Califórnia, na Saldanha Marinho. O prato com lentilhas estava delicioso, a cozinha só melhora. O restaurante libanês com nome roliudiano prospera. A clientela eletriza o dono, o Khalil, que vem e vai, com método e uma ruga no centro da testa. Entre gentil e preocupado, vai expandindo o velho armazém, joia oriental perdida na fria Curitiba. No balcão, flertando com os oitenta anos, o pai, Maged Khalil, quem abriu o negócio, soma milenar e lentamente as comandas na ponta da caneta. A calculadora descansa perdida ao lado da caixa de Trident.

Do Califórnia oriental, sigo para a Biblioteca Pública, onde fico até a vontade de tomar café me arrancar de lá. Entre ir ao Paço da Liberdade e o Café 271 no edifício Tijucas, decidiu a chuva. O prédio fica a um quarteirão, e o café no vigésimo andar.  Ao entrar, damos de cara com dois velhos janelões, que àquela hora exibiam um horizonte diluviano sobre a capital paranaense. Sentei-me rápido na única mesa vazia. Passado o apocalipse, sobrou uma saliva cinza-claro melando a paisagem.

O 271 estava movimentado. Rolava uma reportagem sobre o êxito comercial do café da Suellen. A repórter repetiu algumas vezes o destaque: “dispensaram o capital de giro, em seis meses o cafe se pagava”, em frente a uma câmera.  Do outro lado do balcão, a proprietária tocava o negócio ouvindo e respondendo aos pedidos da clientela.

Outro polaco velho, magro, cabeleira branquíssima, agitado, arranhando os oitenta anos, irrompeu na biblioteca do Paço, onde o café reforçado da Suellen acabou me levando. O polaco discursava pro vazio, sozinho, entre as estantes de livros. Coloquei fones de ouvido. Meu plano era terminar o capítulo que tinha começado a ler na Pública. O polaco apanhou uma cadeira, sentou-se e desembrulhou o inconsciente na mesa da bibliotecária.  Ela ouvia, ele falava, ela ouvia, ele falava, falava, falava. Ficou nessa uns quarenta minutos, levantou-se, repôs o assento batendo-o com força na mesa onde eu estava. Desculpou-se — irônico? — e despediu-se da moça.

Tirei os fones. A sala retomou o silêncio, guardei o livro, saí pra rua. Me arrependi de não ter ouvido o que ele falava. Entregaria o sentido dessa crônica em zigue-zague. A lucidez vem de onde menos se espera, como uma fera pronta para o salto, diria melhor que isso, Orides Fontela.


 

* Foto minha, Paris, 2022.

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