Não li os Miseráveis, de Victor Hugo, mas um morador de rua leu. Faz tempo, ele retirou a obra do escritor francês da Biblioteca do Sesc, do Paço da Liberdade, no Centro de Curitiba. Só o primeiro volume da luxuosa edição da paulistana Cosac Naify, porém. Exemplar emprestado, exemplar perdido, pois o miserável não pôs mais os pés no paço. Nada mais justo, pensei. O Sesc que compre outros livros pra suprir a demanda.
Seria esse leitor o londrinense que gravava um video no celular na esquina da Cruz Machado com a rua do Rosário? Wagner reproduzia uma declaração de Mario Quintana sobre casamento enquanto filmava: “Por que o senhor nunca se casou? Sempre preferi deixar dezenas de mulheres esperançosas do que uma só desiludida“. O conterrâneo de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé contou que viu o poeta gaúcho perto do hotel onde morava.
— O Falcão que pagava o quarto dele, não era?, arrisquei.
— O hotel ERA do Falcão! — respondeu com o mercúrio das lâmpadas da Cruz Machado nos olhos.
Tinha uma baita bolha no calcanhar, efeito da caminhada que fez de Joinville até o marco zero de Curitiba. A irmã tem propriedades, advogada, acho, mas brigou com ele. Voltou a repetir a declaração do Quintana, que até onde apurei é verdadeira. Esqueci de lhe perguntar sobre Os miseráveis. Eu o deixei com a Tayná, a quem ele parecia querer desiludir.
Poderia teria sido, então, o Eduardo (ou Paulo?), outro morador de rua que encontrei antes dos episódios acima. Faltavam uns milímetros pra meia-noite, quando ele surgiu sem camisa e com um saco de lixo preto nas mãos, na Saldanha Marinho.
— Opa, tudo bem?
— Ciao – respondeu, ao que repliquei com um — Buona sera, improvisado
Então, abriu os braços como um cristo e disse — Parla italiano!
Logo passou a dizer que fazia tempo que não falava a língua de Dante. Eu e o Rubem, que me acompanhava nessa jornada, jornalista de formação, o varamos de perguntas. Mas ele ainda exultava, meio incrédulo de que falássemos italiano. Apelei para os três primeiros versos da Comédia, que sei mal e porcamente. Reconheceu-os no ato e me acompanhou — trôpegos amassamos o terceto famoso no calçamento do centro velho de Curitiba.
O Rubem, que fala italiano de fato, arrancou mais informações dele em meio às suas exclamações: -“Era da tanto che non parlavo italiano!”. Era italiano mesmo (esqueci a cidade!), filho de brasileiros, estudou por lá, veio ao Brasil mais velho, onde foi abandonado pelos pais, se entendemos bem o enredo. Também falava bem o português, ainda que patinasse nas mesmas histórias, atoladas no trauma que arrasta nas ruas junto com seu saco de lixo. Os miseráveis não sei, mas a Comédia leu, o Inferno ao menos. Entramos no carro, a selva escura o engoliu.
* Imagem: Cabeças, Portinari, Série Os retirantes, óleo, papel, 41 x 33 cm. Disponível em: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1676. Para conferir a história da declaração de Mário Quintana, ver aqui: https://correio.ims.com.br/uncategorized/mulheres-de-quintana/
Que grande figura o Eduardo (ou Paulo?)!! E viva a rua!!
CurtirCurtir