O octogenário R. xinga seus seis cachorros por qualquer coisa: se latem, se pulam, se derrubam coisas, a cachorrice que for. Vizinho mais próximo, plantou um pé de camélia na frente da sua casa. -- É a árvore dos abolicionistas, disse, enquanto a Adriana pegava uma muda de babosa que nascia em sua calçada verde.…
Autor: Eugênio Vinci de Moraes
Apocalipse vegetal
Meia dúzia de árvores foi ao chão neste início do ano. Um Bugreiro caiu em janeiro, de madrugada, quando Curitiba se desmanchava em chuva, trovões e relâmpagos. Derrubou outra, anônima, e nosso poste de luz. Mais uma, identificada apenas como "a lenha é boa", tombou mas não encontrou o solo, apoiou-se na imensa caneleira que…
Chega mais, 2023!
Acordei com os latidos burocráticos do Fran. Ele trincava o silêncio da manhã com notas desafinadas e insistentes. Deve ser um gato, em cima da cerca, pousado no asfalto, limpando-se indiferente ao martelo protocolar do cãozinho. É preciso alertar o felino, esse espaço tem dono!, não chegue perto!, mas o pequeno Fran sabe que a…
Cacos de primavera
-- Alô, perdi o celular, bloqueei o chip, como faço pra conseguir outro? A conversa com a operadora de celular não começou assim, claro. Conseguir falar com uma pessoa humana gente de verdade em carne e osso vivinha da silva demora uma tabuada de dígitos. Mas deu bom. E fui premiado. Dia 31 outubro a…
TPE – Tensão Pré-Eleitoral
Escrevo dois parágrafos, paro, clico na aba do Twitter, abro video, compartilho, fecho, reviso duas laudas, fecho, abro a aba de portal de notícia, leio, Pesquisa só às 18h, fecho o portal, respondo e-mail, conversa no chat da firma, dois BOs resolvidos, respiro, tomo café, não, o café acabou, levanto, água no bule, o pó,…
Passarinho na nuca do malvado
Ele queria conversar. O livro na cesta do assento da frente foi pretexto. Me pediu pra ler. Estava em português. Desolé. Mas lembrei de um em francês na bolsa. Mostrei pra ele. Viu o título, Noirs dans les camps nazis, achou pesado — sem deixar, no entanto, de expressar sua repulsa aos nazistas e ao presidente brasileiro.…
Estrangeiros
O chihuahua hesita na porta do vagão do metrô. O homem que o acompanha entra e chama. Nada. Damos um zoom no cãozinho. O apito da porta corta como estilete o ar art déco da estação Raspail. Nada nem ninguém respira, que desfecho isso? Pelos brancos no focinho, nada de pular pra dentro, “perro parisiense,…
Paris, uma festa?
Um ciclista dispara pela ponte Notre-Dame cantando “Alegria era o que faltava em mim!” — uma pedinte me xinga em frente à Igreja Saint-Séverin a troco de dez centavos de euro, uma garota fala a um celular apoiado em uma caixa de papelão que ela carrega no Boulevard Saint-Michel, todos falam, olham, agarram-se a um portable em…
Quero? Quero!
– A família dele é religiosa, não sei se vou segurar essa! A jovem de mechas assimétricas balança o braço tatuado enquanto dá a ficha do novo namorado para a amiga ruiva no vigésimo andar do Tijucas. O drama amoroso se comprime no pequeno café 271, quase escapando pela grande janela que projeta a paisagem…
É verdade este bilete
O dia não está instagramável. Flopou geral. Enfiou-se numa geladeira cósmica com a gente tudo dentro. Cenário e figurinos trabalhados no cinza chumbo, cinza melancolia, cinza depressão. Opa, freezando, antes de isso acabar numa urna funerária. É hora de puxar outro neologismo das entrelinhas, e photoshopar o ambiente pra seguir o dia e biscoitar algo…