-- Coca-cola faz mal pra gripe. Assim a avó contornou a vontade de R. de beber o refrigerante. O piá era uma máquina de perguntar, e a mãe da mãe dele tentava muito pacientemente dar conta das demandas do guri. Atrás na fila do ônibus, colei na conversa. Duas ou três perguntas e acabei tropeçando…
Crônica ruim
Miseráveis?
Não li os Miseráveis, de Victor Hugo, mas um morador de rua leu. Faz tempo, ele retirou a obra do escritor francês da Biblioteca do Sesc, do Paço da Liberdade, no Centro de Curitiba. Só o primeiro volume da luxuosa edição da paulistana Cosac Naify, porém. Exemplar emprestado, exemplar perdido, pois o miserável não pôs…
Apulcro
O abençoado Benito está no terceiro casamento. A atual, espanhola, foi precedida de uma italiana e uma libanesa, nesta ordem. Tem seis filhos e uma cabeça de lobo pregada na parede da barbearia. Oitenta anos e uns centavos, corta cabelos há sete décadas na Zona Oeste paulistana. Ele conta as façanhas de dom Juan deslizando…
Autobiografia em seis parágrafos
Esta é última crônica antes dos sessenta. O passe de idoso, as filas e os estacionamentos preferenciais crescem no horizonte. Antes de alcançar esses privilégios da velhice, melhor olhar pra trás e fazer um acerto de contas com os anos que se foram. Aos vinte, circulava pela PUC de São Paulo. Mais pelo lado de…
Planilhai!
Uma planilha Excel flutua na tela do meu computador. Aguarda dados, deseja dados, quer processar dados doidamente em uma galáxia de colunas e células. Pode encaixilhar uma corporação inteira em seu éter de linhas. Um buraco negro capaz de enquadrar o evento mais redondo do universo. Aspira para seu plano quadriculado departamentos, colaboradores, notas, resultados,…
Crônicas instagramáveis
Ao perguntar se eu era cliente, pedir meu CPF, a caixa deixou escorregar aquele "s" levemente chiado, doce, que me fez perguntar se ela era de Belém. "Nao, sou do Amapá", falou, abrindo levemente as vogais. A deliciosa prosódia do paraense, e agora do amapaense, lima o s chiadissimo do carioca e acalma a vogal…
Adalberto e Pablo
-- Aprender espanhol? Pra quê? Adalberto, colombiano de Norte de Santander, foi direto. Depois, engoliu um punhado de macarrão com torresmo fisgado de uma sacola plástica que lhe servia de marmita. Essa conversa começou quando me virei para pegar a mochila. -- Desculpe, não tinha te visto aí, disse com um gesto para tirá-la da…
Sonho meu
Sonhei que estava na África. A negra, a Central, no Congo. Nada indicava ser o Congo-Brazzaville ou a República Democrática do Congo. Meu inconsciente ignora as mudanças que houve por lá ou condensou as diferenças em nome de algum sintoma, freudiano que é. Solerte, empurrou a discussão dos conflitos pós-coloniais que corroem esses países e…
De zigue-zague em zigue-zague chega-se aonde?
para Orides Fontela e Peter Um polaco velho cresceu vindo da esquina. Balançando cabeça e braços, avançou na direção do ponto de ônibus, não parou, passou, comeu uns metros de calçada, voltou, murmurou algo, pisou forte até a esquina de onde surgiu, retornou, refez o caminho, assim até o Bracatinga chegar. Uma máscara preta…
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Estranhos, encantadores e desgovernados
Peter entrava pela cozinha vindo do quintal, sentava-se, bufava, discursava para o nada, levantava-se, varava a porta que dava pro corredor, seguia em frente, atravessava a sala ao som de "O Que Será?", do Chico Buarque, baixava na garagem e saía para rua 13 de maio onde eu morava em São Paulo, na década de…