Efeméride

O tempo não poupa as palavras. Justa ou injustamente condena um magote delas ao ostracismo. Só os dicionários as salvam, como essas duas que acabei de digitar. Umas mais outras menos, aos poucos vão perdendo quem as fale ou as escreva. Sem cuidadores para levá-las pra tomar sol, acabam esquecidas no asilo lexicográfico a que recorremos quando esbarramos desavisadamente nelas.

Entrementes vão pingando aqui e ali.  Seu fim muita vez é apressado por editores e revisores que não as toleram mais, Fui um desses, confesso. Cortei vários entrementes em um livro que revisei umas duas décadas atrás.  O fiz por entender que o tradutor o usava por gosto pessoal, não para dar um tom mais formal ou anacrônico ao texto. Foram todos despejados, substituídos por nesse intervalo, nesse meio tempo, ou por entretanto ou mas. Senti-me uma espécie de serial killer lexical, um coveiro a serviço do up grade literário.

Mas não faço isso amiúde, sou revisor bissexto, pra alívio das palavras velhas. Em uma edição recente de Dostoievski, o tradutor optou por usar amiúde amiúde. O uso e a frequência dessa palavrinha miúda na obra justificam-se provavelmente para expressar certa afetação ou dicção literária qualquer ou para dar um tom meio anacrônico ao texto. Seja o que for, amiúde vai migrando para o museu, a despeito da simpatia e a contenção que carrega em suas seis letras.

E tem o outrossim. Quando você pensa que se aposentou, surge aqui e ali, em texto empolado, em sentença judicial, em texto acadêmico ou até em coluna de jornal. Não arrisco explicação, mormente porque minhas observações não têm método, palpites puros — a não ser para os textos jurídicos, notórios sarcófagos da lingua, habitados por múmias togadas. De todo modo, usa outrossim quem quer, use bem, use mal, não será o cabotino aqui quem decidirá.

Por falar nisso, gosto dessa palavra, cabotino, mas não de quem a encarna. Acho que foi num texto do Mário de Andrade que a li pela primeira vez. É uma espécie de palavra-freio, pra maneirar nosso narcisismo, coisa cada vez mais difícil hoje. Não me sinto cabotino em usá-la aqui, mal a uso, o leitor pode conferir, se tiver tempo para percorrer as 99 crônicas publicadas no Letra Corrida.

E por falar em números, esta é a centésima crônica deste blog. Uma efeméride, modesta, locodigital, mas ainda assim efeméride. Outra palavrinha aposentada, que tira uns trocados em textos bissextos ou efêmeros como este. Teve seus muitos minutos de fama. No plural, efemérides nomeava um gênero muito comum no século dezenove, que registrava eventos ocorridos num dia em diferentes anos. O Barão do Rio Branco escreveu um desses. Mas vamos parando por aqui, já tomei muito o seu tempo, aproveitemos esse sol de outono, neste cálido 12 de junho de 2023.

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