Pensou em zumbis? Não é culpa sua. O mês, o cinema, a festa ianque são mais fortes. O sentido do título aí é literal. Mortos que permanecem vivos, de um jeito, de outro e mais outro. Não caminham como robôs, nem atacam os transeuntes. São sutis: terceirizam sua presença ou aparecem em sonhos, visões ou mensagens mediúnicas. Vivinhos da silva, para ressuscitar uma expressão esquecida há tempos.
Começo com a história do Branquinho, um vira-lata simpático, miudinho e idoso. O cãozinho, residente em Santa Clara do Sul, cidade perdida no miolo do Rio Grande do Sul, colonizada por italianos e alemães, habitada por menos de sete mil almas, visita com alguma regularidade o túmulo de Ademar Seidel, seu tutor. A telerreportagem em que acompanhei essa história mostra várias vezes o cachorinho na sepultura, em frente à foto do Ademar . Dá a entender que Branquinho o reconhece na reprodução fotográfica.
Discordo. Os SRDs são craques do faro, sabem separar o lixo da proteína como ninguém. Mesmo assim, é uma experiência delicada. O focinho do bichano teria de captar no meio da fedentina da carniça o quid aromático do tutor. Ou distingui-lo dos corpos vizinhos. Isso se o odor for capaz de transpor o granito do túmulo. Ou haveria na pedra um resquício oloroso do tutor? Mas e se não for isso, for outra coisa a levar o cachorrinho à sepultura? De que ordem seria? Seja qual for, algo está vivo no morto para que o cachorro permaneça a seu lado.
Bem longe de Santa Clara do Sul e alguns milhões de habitantes a mais, o nova-iorquino e guitarrista folk David Van Ronk conta que aprendeu um riff graças a um morto vivo. Li essa história em Um brinde aos mortos. História daqueles que ficam, de Vinciane Despret. Por muito tempo, Van Ronk tentou reproduzir o som criado por Gary Davis, um bluesman e reverendo cego. Só veio a conseguir anos depois da morte de Gary, num sonho: Um show, Van Ronk está na plateia, primeira fila, e o buesman no palco. Em um momento do espetáculo, o reverendo cego toca o riff, diminui o ritmo, em uma espécie de câmera lenta, aproxima-se da plateia, Ronk pode observar a frase sonora em detalhe. Quando desperta, corre até sua guitarra e, heureca!, consegue tocar o trecho antes intocável.
A leitora tem as suas explicações. Se for psicanalista, o leitor decerto matará a Lacan esse enigma. Despret tem a sua interpretação, compre o livro, empreste-o, vale a pena. Pra mim, mais um caso de morto vivo. O músico poderia ter aprendido o riff sonhando com outra pessoa, alguém com quem teria encontrado no dia anterior ao sonho, como muitas vezes acontece. Não, o próprio Gary protagonizou o show onirico. Pouco importa se era alma do reverendo, seu fantasma, algo do gênero, vale mesmo é a presença indiscutível do morto na história de Van Ronk. O bluesman deu um jeito de chegar no inconsciente do músico nova-iorquino — Só assim ele aprende! –, pra resolver o que ficara pra trás sem solução. Quem deu corda a isso, Ronk ou Gary, como saber?
O reverendo transita entre nós, para além do túmulo ou de suas cinzas, pela boca de Ronk, por este texto, assim como Ademar Seile passeia nas patas do cãozinho gaúcho e vai pra rede local de tevê, chegando à internet. Coisa de mortos vivos. Um brinde ao Ademar e ao Gary. Ah, e ao Dave Van Ronk, que vive morto por aí desde 2002.
* Foto: Reprodução/Rede Social / Porto Alegre 24 horas (site Terra)
