“tive coisas impróprias na/ dando dentro dele/ pós, pedras, medos,/ remédios, tiranias”
Tatiana Roque
Sonhei que estava indo atrás de aranhas. Desço uma escada, sigo por um corredor que corta repentinamente à esquerda, ando mais um pouco e “aqui estão elas!” Há uma grande vitrine, água, areia, pedras e bichos. meio aquário, meio terrário. Vejo uma tarântula. “Vou levar essa!”. Pode picar, mesmo não sendo venenosa. Desisto da ideia. Uma espécie de caranguejo high-tech, grande, tenta engolir a tarântula. Não consegue. De repente, todos aqueles animais vão sendo cobertos por um grande artefato prateado, semelhante a uma grande concha, formada por pedaços quadrangulares. Flutuando, vai se fechando lentamente. Algo entre máquina e ser vivo. Penso na diferença entre a pressão da água dentro e fora dela. Em homeostase. Explodirá? Desperto.
Fazia dois dias que haviam me extraído a vesícula. Nao cortaram, nem abriram um bueiro no meio do abdome. Mais sutis, fizeram quatro furos, pelos quais entraram cânulas e câmeras que me “operaram” como aquelas máquinas de pegar urso de pelúcia com gruas, com direito a cortar, pinçar e tirar o souvenir pelo umbigo. Não sei você, mas cresci achando que nossa cicatriz umbilical era intocável. Imexível. Qualquer arranhão seríamos fisgados pela grua de Deus ou do seu Avesso. Passados sessenta anos, descubro que pode ser traspassado e, pior, cicatrizado, ele, elo original, que é, ele mesmo, uma cicatriz.
Seria quase um piquenique, segundo o cirurgião. Chegaria ao hospital, uma hora na mesa de operação, uma noite em observação, dia seguinte já estaria em casa, onde passaria da alimentação líquida para a sólida, mais uns dias poderia voltar a comer normalmente. Esqueceram de olhar a previsão do tempo, fez frio e choveu nesse passeio. A dor estava mais para o incômodo — refresco comparada a uma dor de dente –, até a hora que sem querer bati a barriga nas costas da Adriana e conheci a tal da dor visceral. Dói em ondas, expande-se avançando pelas dobras, vasos, músculos internos, como se apertados por uma tenaz. Felizmente, passa rápido. Nos dias seguintes, criei um campo de força invisível entre meu abdômen e o planeta.
Tirei os pontos uma semana depois. Contei doze. As quatro cicatrizes formam um semiarco irregular do lado direito da barriga, começando na boca do estômago, terminando no umbigo. Nada simétrico, nem artístico. Ponto a menos para o cirurgião. Em casa, a parte delicada foram as negociações entre a alimentação e o aparelho digestivo — ou digestório, como se diz hoje. Não dá para errar na escolha do que se vai comer. Com muita fome em um final de tarde, devorei meio pacote de bolacha água e sal. Deu quarenta minutos e o conclave digestório recusou a modesta mas inadequada oferenda, punindo-me com enjoo e levando-me a falar aos peixes junto ao vaso sanitário. No mais, alternei entre a prisão de ventre e o intestino solto por uma semana, mais a dor provocada por gases comprimidos nas entranhas agastadas pelas pinças e gruas que bagunçaram-lhe o coreto visceral. Mas aos poucos a chuva cessou, o frio amainou, e minhas relações como os mecanismos intra-abdominais melhoraram.
Esqueci de lhes contar da recuperação pós-anestésica. Parecia estar deitado em uma piscina rasa, com a água até os ombros e imóvel. Como o efeito demorava para passar, arrisquei fechar o olho, caçar um cochilo. Mas senti uma barreira, uma lucidez leitosa impedindo de mergulhar no mundo dos sonhos. Ah, o sonho, ia me esquecendo dele também! Vamos terminar esta crônica. A tarântula e o caranguejo são parecidos, no Brasil chamamos uma das espécies dessa aranha de aranha-caranguejeira, a palavra caranguejo vem de cancro, que dá em câncer também — constelação e doença. O leitor já concluiu, a concha fez as vezes da cirurgia, a ingente grua que fisgou os aracnídeos e crustáceos que andavam a molestar meus órgãos abdominais. E acredite, saíram ambos em forma de cálculos de dois centímetros de cristais de colesterol, pelo umbigo, encapsulados pela química digestória.
Fez-se a homeostase.
