“…a derrota da estabilidade de cada um em ser eu”
Macedonio Fernández, Museu do romance da Eterna
— Sessenta e um anos, um metro e setenta e seis, oitenta e quatro quilos, respondia, robótico.
Enfermeiras, anestesistas, médicos, técnicos de enfermagem e socorristas de ambulância pediam-lhe essas medidas em cada atendimento que faziam. Fora o escrutínio sobre doenças pregressas e atuais — Diabetes? Pressão alta? Alergia a medicamento? Nas mudanças de turno, novos profissionais, velhas perguntas. Não entendia por que seus dados não eram registrados no computador da torre de enfermagem da ala em que convalescia.
Concluiu daí que paciente não é o sujeito que está sob cuidados médicos. Não esviscerar o próximo de jaleco branco ou refrear o desejo de clamar ao céu asséptico dos numes hospitalares para que os dados pessoais sejam multiplicados entre todos os cuidadores daquele templo da saúde nacional explicam melhor o termo. No sistema de pesos e contrapesos da sobrevivência clínica, brigar com alguém portando agulha, bisturi e a chave do armário de remédios não é aconselhável. — Paciência, paciente.
O que mais o perturbava era o peso. Medida volátil demais. Sua altura é um metro e setenta e seis desde o seu alistamento militar em 1981. E como nunca teve um estadiômetro em casa, tampouco um antropômetro, nem conheça quem possua um, ou quem conhecesse esses nomes, acredita que sua altura mantém-se estável há mais de quarenta anos. Mas o peso, não. — Como pode ser a mesma pessoa esta uma de hoje, com oitenta e tantos quilos, e aquela outra, de setenta e alguma coisa, que pagava suas contas em cruzeiros?
Doía-lhe repetir: — Oitenta e quatro quilos…, pois logo via o visor da sua balança digital de banheiro marcar oitenta e um de manhã; oitenta e seis, à tarde; e oitenta e quatro, à noite. Dependendo, claro, do que tinha comido, do exercício que tinha feito ou deixado de fazer. Em termos de peso, não era um, era trezentos.
Na solidão do quarto hospitalar, assistindo a séries descobriu que para o corpo funcionar precisava de uma multidão de micro-organismos dentro e fora dele. Soube que há mais bactérias na sua saliva do que gente em Nova York. — Chegam a pesar um quilo!, repete o que ouviu na internet. — E superam em muito o número de células humanas do corpo! Aprendeu ainda que esses micro-organismos são fundamentais para que a digestão flua bem e produza fezes flexíveis o suficiente para rumarem rápidas ao reto. Espantou-se que a alimentação moderna, monotemática, extingue bactérias antediluvianas, bem importantes para a flora intestinal. Ouviu ainda um cientista pançudinho dizer que muitas bactérias podem guiar nossos desejos por comida — açúcar, coentro, mariscos. Assaltos à geladeira comandados por seres de 0,3 a 750 nanômetros.
Sem essa multidão de sereszinhos invisíveis os humanos não parariam em pé, sequer se ergueriam a modestos um metro e setenta e seis de altura. Veio-lhe a iluminação, daí: — Não somos um ente uno, somos um agregado de seres trocando energias para sobreviver!
Pela manhã, quando a enfermeira de plantão repetiu-lhe as perguntas de praxe, retrucou:
— Com ou sem bactérias?
* Imagem: Colônia de bactérias (Daniel Wall/Divulgação)
