para Aurora
Tudo começou com minha filha, há uns seis, sete anos, não sei bem. — Pai, você tem que tomar água. A alimentação pra ela navega em outro registro, água é mineral, carne é proteína, batata é carboidrato. — Pai, você tem que tomar água, tantos litros por dia! Arrogante e conservador, ignorei esse conselho várias vezes. Pior, em vez de tratar a ressaca com o líquido sugerido, optei pelo refrigerante mais viciante do planeta. Gênio. Matar a sede com um líquido programado pra nos desprogramar lentamente.
Mas eis que uma extração da vesícula, seguida de um arriscado resgate de dois cálculos no pâncreas, mudou tudo. Corri o risco de ganhar uma pancreatite, poderia não me matar, mas me obrigaria a viver como um monge. Daí que o repetido conselho da Aurora rompeu a teimosia sexagenária, regou meus neurônios, e me reconectou com o líquido dos líquidos. — Pai, você tem que tomar água!
Até onde sei é o único elemento da natureza cuja composição química o mundo inteiro conhece, H2O. Falando nisso, uns espertinhos se apropriaram dessa notação e a transformaram em marca de uma beberagem cínica, meio refrigerante meio água, doce como uma jujuba. Mas não tenho muita moral pra tripudiar essas gracinhas do mercado, consumidor que fui dessas infusões modernas. Só bem tarde descobri — Eureka! — que água faz um bem oceânico. Achado que me torna não um Arquimedes, mas uma espécie de terraplanista ou antivac arrependido. Paciência. Importa que deu tempo de dar um cavalo de pau e me desviar, por enquanto, das profundezas do Xeol.
O inesperado foi o prazer. Passei a gostar da coisa. Não sei como, mas algo em meu sistema neurológico passou a receber o trisal H2O com tesão, superando o harém de açúcares da indústria de refrigerantes. Não virei um asceta, calma. Não larguei o álcool, bebo menos do que bebia, mais do que os médicos recomendariam. O maior feito foi desfazer o casamento entre álcool e refrigerante. Não paro mais em um posto de madrugada para comprar uma lata de refrigerante zero. Só quando a ressaca exige, mas só. O resto é água.
