Arte da fuga

Quanto tempo você fica sem espiar o celular? Não valem as horas de sono, nem as de banho. As de sexo e dirigindo contam, pois há quem monetize fornicando ou no volante. Largar esse osso digital não é fácil. É uma sofrência. Têm alguns sortudos que desconectam-se algumas horas por dia — ou porque trabalham em serviços que dispensam o uso da internet, ou porque pagam assessores para imolarem-se algoritmicamente por eles. E há os muito pobres, para quem a desconexão não é um ganho, mas um cínico prêmio de consolação. Embora não pertença a nenhuma dessas categorias, me desliguei geral desse drácula de silício, em duas oportunidades, neste início de 2025.

A primeira aconteceu graças ao Arrigo visita Itamar (Ao vivo), último disco do compositor paranaense. Tive de ouvi-lo em um tocador de música abrigado no celular, reconheço, mas, dado o play, esqueci dele. São dessezete faixas (chamam-se assim ainda?), composições do Itamar, sambas da velha guarda e outras canções. Arrigo tem aquela voz rouquíssima, fora dos padrões, como sua música atonal, repleta de quebras, pausas, falas, vozes, arranjos cheios de andaimes, corredores, quinas e degraus. Irônico sempre, me lembrou o incrível Ismael Ivo saltando pelos vãos do teatro Sesc Pompeia, em 1982, em São Paulo, escarnecendo da plateia, encarnado no fora-da-lei Clara Crocodilo. Permaneci longe dos algoritmos (yo lo creo!) por uma preciosa hora e alguns desintoxicantes minutos.

A segunda rolou em um show do grupo Rosa Armorial inspirado nas músicas do Hermeto Paschoal. Os seis músicos vestiam roupas floridas, repercutindo a alegria que fluia dos instrumentos no pequeno palco do Teatro Paiol, em Curitiba. A música do Hermeto é uma festa, recolhe sons de todos os meios e objetos possíveis, um vampiro da felicidade. A percussionista da banda mandou um solo com porcos e galinhas de borracha, homenagem aos suínos que participaram do compacto Porco na festa, do Hermeto, de 1975. Ainda teve pife, instrumento tocado por Alexandre Rodrigues, um canudinho de madeira com sete furos, dos quais sai um coro de agudos, enganchando-se no estandarte musical bordado por bateria, percussão, baixo, guitarra, violão, violino e flautas transversais do Rosa. Só faltou estender o show por mais algumas horas como fazia (ainda faz?) o mago alagoano.

Esses dois momentos analógicos me afastaram por algumas horas dos caninos ensopados de lítio. Foi só uma trégua, eu sei. Deu vontade de comprar um toca-discos, réstia de alho mecânica para afastar esse Edward Cullen eletrônico. Mas os preços das pick-ups estão impossíveis. Talvez a esperança esteja no Xandão, o ministro com pinta de Nosferatu. Vai que, estressado pelos tsunamis de Fake News, ele resolva restringir nosso acesso à internet a três horas diárias? Ouço a risadinha abafada do leitor, ainda mais agora que os imperadores da Web arrumaram uma vaga no governo do país mais poderoso do planeta. E dois deles têm uma baita pinta de vampiro.

Um comentário em “Arte da fuga

  1. Ah, por motivo de força maior, nos afastamos do apêndice sim. Que motivos são esses, cada um é que sabe ne Genão? Ler um bom livro com certeza pra mim. Abração!

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