Há uma turma da pesada querendo finalizar o planeta. Fazem isso sem sujar o terno. O ringue são as redes sociais, onde jabeiam com posts, memes, fake news e o diabo digital a quatro. Leva o cinturão quem mente mais. Claro que muita maldade más grande se hace nos bastidores, realíssima. Mas não vim aqui pra estragar seu dia com esses tipos, vim falar de uma gente que está no outro extremo, gente demasiado gentil, vivem fora das mídias, ninguém de terno nem de tailleur. Vamos a ellos.
Bete deve ser xamã ou filha de um. Voz suave, quase sem modulações, vende artesanato, num ritmo encantatório, na calçada da calle Hospital, entre o Mercado San Pedro e o Arco de Santa Clara, em Cusco, no Peru. Sobre o pano estendido no chão, em meio a lhamas de pelúcia, cholas de pano, e outros produtos, descobrimos umas pedras brancas com desenhos cinzelados à mão. Narram o mundo quéchua de Bete, cujas histórias aprendeu com o pai. Uma dessas pedras conta a história de Pachamama, outra é uma espécie de talismã, dá ânimo a quem passa por perrengues. Não entendi se ela mora na periferia da cidade — mui parecida com as nossas, casas empilhadas umas nas outras, sem reboco — ou se nas montanhas que cercam a cidade. Um sorriso fácil, gentil até os ossos. Nos dias de semana, Bete só trabalha à noite, para escapar do rapa cusquenho, explica, nos finais de semana brilha sob o ardido sol andino.
No mirante do bairro de San Blas, encontramos Amarildo, outro camelô. Tinha poucos produtos, bonecas, lhamas e belas pedras cor de grafite, sem desenhos. A pedra forma a alma andina. Ele explicou as propriedades de cada uma, sem esconder o orgulho desse saber. Depois nos explicou o mapa de Cósco – como eles pronunciam o nome da cidade por lá –, construída segundo a figura de um puma. Tentou nos mostar isso apontando para as centenas de telhados ocres da cidade, aqui e ali assaltados pelas cúpulas das igrejas espanholas. Quase não há árvores na cidade, o tom geral é cor de tijolo, ora menos ora mais avermelhado. Deixamos Amarildo sentado olhando para o felino adormecido, com seu sorriso manso e sua gentileza ancestral.
Só chegamos a esse ponto de San Blas por causa do vendedor da Génesis, livraria a um quarteirão da Plaza de las Armas, no centro de Cósco. Compramos um mapa, cansados dos aplicativos de celular com os quais não nos achávamos pelas calles da ex-capital do império Inca. Com um lápis, o livreiro foi riscando na carta da cidade um roteiro para andarmos pelo bairro cusquenho com ar de Parati e ladeiras de Ouro Preto. Ofereceu para deixarmos os livros que compramos na loja, depois passávamos para pegá-los, assim caminharíamos mais leves pelas calles suspensas a mais de três mil e quatrocentos metros de altitude. Leves como o Alejandro, o mesero de um restaurante pendurado no alto da calle Kiskapata, que nos emprestou o wi-fi do seu celular para podermos ler umas mensagens atrasadas. Com menos gordura e mais gentilezas, despenhamos de San Blas, de volta à Plaza de las Armas.
Há mais desse povo bom, como as simpáticas vendedoras do Mercado San Pedro, que costuraram uma trama entre elas à procura de uma pimenta peruana para mim, como a atendente do café do Hotel Usgar San Pedro, que trocou uma penca de moedas por notas de soles sem eu pedir, como o bilheteiro do Museo del Sol , que nos deixou entrar de graça, sem que, de novo, pedíssemos, fora os taxistas clandestinos, um caso à parte — ainda que buzinem loucamente, são incrivelmente simpáticos, pontuais, certamente uma exceção em toda nossa Pachamama. Por falar em exceção, reencontrei o espírito do tempo no supermercado local, Órion, onde não se é bienvenido, em cujo hall há fotos de pessoas que teriam roubado seus produtos e um local onde se deixam bolsas e pacotes antes de entrar. Ali sente-se o bafo de “los heraldos negros que nos manda la Muerte“, como dizem os versos do poeta peruano Cesar Vallejo. Mas, mal traduzindo outro poeta, “nao pense neles agora, olha e passa”.
