A primeira é tropeçar em um gato. Bem provável quando se convive com três. Há vídeos no Tik Tok que mostram os vários gêneros dessa forma de evadir-se do convívio humano. À noite, a visão ruim, a luz apagada, o estado entre a vigília e o sono favorecem o encontro com o fim, ou, antes, com o seu agente, um felino fechando-nos inesperadamente o passo, recombinando a relação do nosso corpo com o ambiente ao fazê-lo chocar-se de modo original com paredes, quinas, maçanetas, pias, torneiras, a depender do espaço onde o conjunto de músculos e ossos ocupa na hora da queda. Seja qual for, corta-se o fio que nos mantém ligados a essa pedrona simpática que gira em torno do Sol
Outra forma de morrer provocam-na os cães. Bulhentos, podem nos apanhar pela afoiteza e rapidez, combinação mortífera. Não sei os teus, mas os caramelos que moram conosco são hiper-ansiosos. Descer e subir escadas, portanto, torna-se uma atividade de alto risco. Pensa, um dos cãezinhos, mais afoito, salivando por um passeio no parque ou um pedaço de bife, esbarra disruptivamente na sua perna sexagenária, propiciando o encontro, fora da agenda, de seu crânio com a quina de um degrau. Bau bau sopro vital. Há variações sem escada, ocasiões em que diminui a possibilidade de atingirmos o óbito, sem livrar-nos, porém, do leito hospitalar, o que pode dar no mesmo.
Mais assertiva é a morte decorrente de queda de árvore. Após dois ou três sons fortes de madeira rachando, toneladas de celulose, mais gramas de bromélias, fungos e água — essa bela massa formada há décadas no solo e no ar do seu quintal — desabam em segundos sobre você, numa flagrante contradição entre o ente que por anos permaneceu no mesmo lugar e a velocidade quântica com que cai em cima de seu esqueleto. É um fim que resulta em geral de um longo relacionamento, não é efeito de uma distração, de uma instabilidade emocional ou física, mas de um fenômeno planetário muito antigo, muitas vezes apressado pelo homem, verdade, mas que concerne ao bom ritmo das matas, que veem crescer e cair seus componentes desde sempre. Acabar esmagado sob uma delas tem nada de tragédia, quem mandou?
Uma variante bastante conhecida de perder a vida é pela doença. Câncer, enfarte ou AVC estão, creio, entre as mais-mais das mortes dessa espécie. Com exceção do primeiro, meus exames mostram que os dois últimos terão menos chances de me dar a Rasteira Final. O câncer fica de tocaia. Vendo uma brecha, ele não se furta em aproveitá-la e desembaraçar, do espírito do tempo, o organismo que ocupa. Contudo, a medicina tem dificultado a vida desse modo de nos eliminar pela destruição da diversidade celular. Claro que há ainda um vasto cardápio de doenças, eu sei. Amanhã mesmo, em um consultório médico, uma dorzinha pode se transformar em um bilhete para o além. Que seja. Só não desejo morrer em um acidente de carro ou vítima de um tiro, coisa desrespeitosa, pra não dizer outra coisa.
Por fim, não menos improvável, é morrer de velhice, a qual, sublinhe-se, está cada vez mais velha. Comprova-o a idade com que têm morrido nossos ídolos, maioria nonagenários. Essa modalidade de falecer decorre tão somente da vontade do corpo que escapou dos gatos, dos cachorros, das árvores e das doenças. Ele se cansa e, num dado dia, expira-se levando com ele a alma que forçosamente o habita. Embora sempre à beira de acontecer, a cada ano que o nonagenário sobrevive, ele e os seus se perguntam até onde essa velha massa de tecidos e sangue aguenta, dada a novidade de viver-se cada mais neste milênio apocalíptico. Não sabemos nem quando nem por que nosso corpo decide encerrar seu expediente biológico. Neste dia, espero não estar usando fraldas e ainda exibir os dois dentes da frente.
* Imagem é um recorte do desenho de Leonilson para o texto Neo-vitorianismo é o novo aliado da AIDS (Caderno São Paulo, FSP, 11/12/1991), extraída de Leonilson, José. Leonilson, use, é lindo, eu garanto. 3a. ed. São Paulo: Cosac edições, 2025, p.93.
