Lições de casa

O sabiá mirava o horizonte, apoiado no galho de uma Bracatinga. Calibrava as asas, interrogava o ar, ponderava qual melhor hora de voar dali onde há pouco sua vida quase expirara. Primeiro bateu na vidraça da janela a seis metros de altura, depois, no chão, ficou imóvel, contando com a sorte, que o atendeu, resgatado para uma caixa de papelão onde ficou a salvo dos inimigos domésticos.

Regurgitou umas amoras muito rubras, que acabara de comer. O vermelho vivo da fruta assustou, fez pensar logo em hemorragia. Enquanto discutia-se o que fazer, levá-lo onde, como e para quem, o sabiá abandonou a caixa. Foi aí que o vimos no galho, examinando o horizonte, querendo encerrar esta história.

Joaquina me acertou a canela esquerda com sua pata posterior direita. Um frame a frente, me encarou com seus olhos verdes e se recolheu debaixo da mesa de jantar. Minutos antes, eu havia subido a escada segurando uma cumbuca, vindo do quintal, onde acabara de dar comida para os caramelos. Ao passar pela porta da sala, tropecei na Madalena, que miou pesado, indiferente ao balé amador que me manteve em pé. A Joaquina correu para proteger a colega, enquanto eu avançava para cozinha, entre aliviado e assustado. Foi então, junto à pia, onde depositei a cumbuca, que levei a patada narrada no topo deste parágrafo. Resoluta, Joaquina se inteirou do acidente e não hesitou em me repreender pelo ocorrido.

As minhas orelhas ardem. Os bichos deram o recado. Um filósofo italiano compara nossa atmosfera aos oceanos. O sabiá bateu na janela como um peixe apanhado na rede. Afundou como uma pedra, desarranjou-se por dentro, quieto, esperou recuperar a leveza e, assim que deu, voltou pro mar invisível sem se despedir de quem armou-lhe a arapuca. A gata foi pedagógica. Respirou fundo e mostrou ao bípede pesado que não se pisa nos seres de veludo que deslizam pela casa. Vou dizer o quê? Miau?

2 comentários em “Lições de casa

  1. Não fui bafejado por essa sorte. Ou os pássaros não foram. Vários morreram ao se chocar contra o janelão de vidro na casa do Tremembé… Acho que nenhum escapou, mesmo com os adesivos colocados… Faz tempo… tudo que aconteceu antes do smartphone parece século 19, ne Eugênio? Abração!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Aqui, eles dão mais sorte, em geral não morrem. Cheguei a levar um sabiá pro Centro de proteção à fauna silvestre daqui de Curitiba. E tem um ou outro que acaba na boca dos cachorros. Tudo acontecendo no século 21, com ares de 20, 19. Pior que vem mais coisa pela frente…, será cada vez mais estranho envelhecer.

      Curtir

Deixe um comentário