Pré-crônica

De um tempo pra cá, expressões do tipo pré-treino, pré-aula, pré-xampu, pré-venda, pré-evento, pré-reserva pegaram que nem resfriado. Daqui pra frente (ou pra trás?) nada do que fizermos será realizado de pronto. Sempre haverá um esquenta. Fenômeno assustador, basta pensar em formas como pré-dormir, pré-acordar, pré-andar, pré-sorrir, pré-viver. Isso nos deixará em um estado de câmara lenta permanente ou em hesitação eterna. Porém, com uma vantagem: nos sentiremos muito seguros, sempre preparados para o que virá. Então, mesmo com um baita pé atrás, resolvemos criar a pré-crônica, o primeiro pré-gênero da história da literatura e do jornalismo brasileiros.

Não encontramos, em compêndio algum, informação que nos ajude nessa tarefa, que nos esclareça como seria essa nova modalidade literária. Vamos por hipóteses: seriam os rascunhos do autor ou, antes disso, os garranchos que ele rasura em seu caderno de notas? Num guardanapo? Ou, recuando um pouco, seriam as ideias que lhe vêm à cabeça, do gênero “Isso dá uma crônica“, que ficam vagando em seu córtex? Ou, retrocedendo mais, seriam as leituras e observações que o cronista faz ao ler outros cronistas e autores afins? Daí entramos no campo da psicologia, tresandando demasiado, mesmerizados pela força do prefixo pré-, que nos atira pra trás cada vez mais.

Mas eis que somos salvos por um preclaro leitor: — A pré-crônica já existe, é a crônica da falta de assunto. Ela narra a incapacidade de narrar sobre algo, ficando sempre a narrar-se, cercando, ciscando assuntos, incapaz de apanhar um tema e desembrulhá-lo em cinco ou seis parágrafos. Não há o que discordar! A crônica sem assunto é a pré-crônica, portanto, a não ser que um outro leitor objete que ela, na real, se concretiza ao narrar, de cabo a rabo, o drama da falta de assunto. Não decidamos ainda, o que nos deixa em um estado pré dos mais conhecidos entre nós, a indecisão, condição adequada para esta modalidade pré-literária.

Um outro leitor nos interrompe: — Pré-crônica e crônica seriam a mesma coisa, dado que a Crônica com C maiúsculo é uma quimera, pois que semelhanças haveria entre os textos de Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, João do Rio, Manuel Bandeira, Júlia Lopes, de Almeida, Léo Pardo, Rachel de Queiróz, Clarice Lispector, Stanislaw Ponte Preta, Campos de Carvalho, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Carlinhos de Oliveira, Mario Filho, Nelson Rodrigues, José Lins do Rego, Lourenço Diaféria, Luis Fernando Verissimo, Mario Prata, Elvira Vigna, Tati Bernardi, Marcos Pamplona, Giovana Madalosso, Marta Medeiros, José Falero, Ricardo Terto, Cida Bento? Mal começo a responder e uma leitora intervém, sem preâmbulo algum, e lista as marcas comuns nos textos dos autores acima: leveza, conversa com o leitor, linguagem informal, humor, assuntos do cotidiano, tudo junto e misturado a depender do artista. Seria só uma diferença de fachada, não de fundo. O que nos deixa no mesmo estado do parágrafo anterior. O que não é ruim.

Mas essa conversa alongou-se demais para uma pré-crônica. E os leitores não param de opinar. Pressinto que seguir adiante pode precipitá-la para o modo crônica, o que seria prejudicial a seu estado preliminar e experimental. Enfim, prevejo muito preconceito contra esse novo pré-gênero pré-literário ou pré-jornalístico cuja finalidade é preparar o leitor para, mais completo e inteiro, prelibar desse velho gênero moderno, a Crônica, de preferência durante um pré-evento, pré-treino ou uma pré-aula.


* Imagem é um recorte do desenho de Leonilson para o texto "Tyson serve chá com porrada para moças" (Caderno Ilustrada, São Paulo, FSP, 21/02/1992), extraída de Leonilson, José. Leonilson, use, é lindo, eu garanto. 3a. ed. São Paulo: Cosac edições, 2025

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