Estou em São Paulo. Os escapamentos das motos açoitam a noite quente. Na Vila Madalena, o jantar, a conversa no celular, a troca de mensagem no Whatsapp, o noticiário da tevê, a série, são pontuados por vergastadas estridentes de CO2. Aumenta-se o volume quando elas estalam. Pergunta-se o quê? não entendi, fala de novo, mais alto!, volta-se o filme com o cursor. Assim segue esta noite paulistana cozida em muitos graus Celsius.
Assisto a Um Abraço no Tempo*, vídeo produzido no Teatro Castro Alves, em Salvador (2020), com a participação da Orquestra Sinfônica da Bahia, do corpo de bailarinos e bailarinas do Balé Teatro Castro Alves e Caetano Veloso. Entre uma chibatada sonora e outra, fluo ao som da bela execução da sinfonia de violino de Beethoven, à performance dos bailarinos e ao balé das câmeras que abrem-se sobre o palco circular e fecham-se nos dedos, lábios e instrumentos dos concertistas.
Mas num determinado instante me fixo em um instrumentista míope. Enquanto a música é levada pelo tempo exterior, paro dentro de mim e penso nos perrengues que esse virtuose de Beethoven passou para ajustar a máscara de modo a não embaçar as lentes dos óculos. Imagino-o perder um compasso por trás da lente enevoada. No vídeo, felizmente os cristais do dispositivo medieval estão transparentes, acompanho seus olhos decupando, precisos, a pauta do germânico genial. Uma pequena vitória.
Volto para fora de mim e o Beethoven já é outro, tocam a Sétima Sinfonia, depois um trecho da Nona. Uma moto derrapa na epifania final, aumento o volume, a melodia de Beethoven espalha-se, outra moto aplica duas campainhas no compasso do compositor tedesco. Uma bailarina salta numa rampa escheriana, em que desce quando parece subir, sobe quando parece descer. Volto a cena com o cursor, enquanto uma freada lá fora incorpora-se, ríspida, à melodia teutônica. Um silêncio raro e ligeiro tomba por uns segundos. O volume do som do vídeo abaixa e ouço a voz de Caetano Veloso falando do tempo. Em seguida, canta sua “Oração ao Tempo”.

Performance de bailarina em Abraço no Tempo/ Print de tela, 29'
Dou outro break pra dentro de mim e penso nos homens e mulheres que galopam as máquinas estridentes lá fora. Nenhum deles está ouvindo Beethoven. Nenhum deles está tocando violino na orquestra Castro Alves. Nenhum deles ouve Caetano agora. Mas injetam na cidade a velocidade, o ruído, a descontinuidade de existir, o som do conflito — a unha do real arranhando a lousa do sonho. Ajustam o capacete nesta noite distópica enquanto o violoncelista apruma o arco para reviver a sinfonia germânica. Heróis, ambos, a seu modo, cavalgam como podem nesse tempo desfavorável.
Dou-lhes passagem.
* Assisti a esse vídeo por sugestão do Jeferson Ferro.