Quem não tem Bloom caça com Apulcro. Amigo recente, guiou-me, à revelia, pelo centro de Curitiba nesse 16 de junho de 2023. Barbeiro, já foi açougueiro e dentista.
— Tira-dentes! — faz questão, exibindo as gengivas no lugar dos incisivos.
Ajeita a boina de crochê vermelha, enquanto subimos a leve inclinação da Cândido Lopes.
— Quero te apresentar um amigo.
— Não tenho tempo agora, Apulcro.
Nem deu bola: — Este é o Júlio César, vendedor de balas de sinaleiro.
— Como o imperador –, disse o baleiro, que estava arriado na calçada em frente ao Banco do Brasil, esquina da Cândido com a Marechal Floriano.
Levantou-se, segurando um saco de lixo preto nas mãos, coçou a longa barba preta e me pediu dinheiro pra comprar uma caixa de bala. Melhor, pediu que eu comprasse. Tenho testemunhado esses, digamos, mendigos morais, não querem dinheiro, mas fonte de renda ou comida. Não sei se é a tal “ética do trabalho do curitibano” como dizem por aqui, ou se o carrapato do empreendedorismo ja lhes agarrou o espírito ou é circunstancial defesa contra aqueles que os acusam de vagabundos pra baixo, como um vereador local, caricatura do Enéas Carneiro, que quer expulsá-los do Centro.
Sem tempo e trocado, dei uma nota de vinte pra ele e quando ia perguntar sua naturalidade, Apulcro me puxou, girando meu fêmur na direção do Lardo da Ordem.
— Tenho uma parada pra resolver, bora — disse, delicadíssimo.
Vencemos a ladeira da Rua do Rosário, demos no focinho do cavalo babão. Encontramos Michele:
— Paga um lanche pra mim?
Antes de eu responder, ela se adiantou, pediu desculpa:
— Nem me apresentei, boa tarde, sou a Michele –, falou isso com uma voz despedaçada saída do capuz de moletom que sobrava em sua cabeça. Me apresentei, nos cumprimentamos com o soquinho pandêmico.
— Esse é o… – -Apulcro tinha sumido.
Perguntei onde tinha o tal do lanche.
— Tem um dogue ali –, disse, apontando para o palácio Giuseppe Garibaldi.
Andamos até lá e chegamos ao YAG. No cardápio, só hambúrgueres.
— Não era cachorro-quente, Michele?
— Quero esse com dois — disse, apertando com o dedo a figura do hambúrguer duplo no menu plastificado.
— Não, te pago esse aqui, com um só –, retruquei, no modo sovina, o preço do duplo era o de uma refeição.
Esperamos uns vinte minutos, voltados para as ancas do cavalo do herói da unificação italiana, que dá as
costas de bronze para a lanchonete LGBTQAP1+.
— E aí, Michele?, ressuscitou o Apulcro, sem justificar o sumiço.
— Conhece?
— Todo mundo conhece a Michele.
Menos eu e o leitor: pouco mais de 30 anos, dois filhos, Richard e Érick, passou um tempo na cadeia, 440g de crack, foi torturada, saco de plástico na cabeça, agulha nas unhas. Se eu entendi, os sogros cuidam dos filhos no Bacacheri, o pai é cadeirante, ela não consegue ver os meninos. Com o sanduíche embalado no saco de papel kraft, sumiu num sopro.
Eu e Apulcro soltamos a banguela em direção ao bebedouro do Largo, rumando para a Praça Generoso Marques, onde pretendia tomar um café no antigo Paço Municipal. Aqui tinha um mercado, me contou o Apulcro. Tirou um livrinho do bolso, sobre a praça, e leu duas linhas transcritas do antigo jornal 19 de Dezembro de julho de 1855: “a pobreza já pode comprar nas casinhas os gêneros para não morrer de fome”.
— Nao, não é possível, eu disse.
* Antigo Mercado Municipal, praça Generoso Marques/Foto: Arthur WIischral / Acervo Casa da Memória. Copyright © 2023, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados. Gazeta do Povo.
