Você já foi ao INSS?

— Onde o senhor leciona? — me pergunta o médico-perito do INSS, usando o verbo preciso, combinando com as unhas bem aparadas e os cabelos ralos hiperpenteados no alto do crânio.

A barba branca, bem aparada e desenhada, contorna o pomo de Adão e avança simétrica até as orelhas. Veste um avental de polipropileno — que o enoja, decerto. Fazer o quê? Uma chapa de acrílico transparente parafusada na mesa nos separa, protege-o de mim. Pega em silêncio meus documentos, murmura algo, e começa a digitar, calado. Na janela, uma persiana arrebentada mal se sustém, dá cabriolas a cada sopro de vento, deixando à vista parte do Edifício Tijucas e um rabo do asfalto da Cândido Lopes.

Na recepção, celular e bolsa tiveram de ser guardadas em um armário. Sem chave, a porta foi fechada com um calço de papel, dobrado uma quatro vezes por um dos três guardas de plantão. Fiquei com um pedaço de madeira numerado na mão como comprovante. — Nao faço parte disso!, quase dava para ouvir o perito dizer. Embora fosse uma perícia médica, não fui tocado, nem examinado. Ao final da sessão, o médico-perito deu-se à autopiedade, reclamou do software do Dataprev. Quase foi simpático, retornei com um gracejo, sem lhe dizer que era o manequim perfeito para aquele setting.

— Como o senhor chegou aqui? — pergunta a cozinheira para o senhor perdido de Campo Largo. Punho enfaixado, está há dois meses sem trabalhar. Ela espera a perícia, quer voltar pra cozinha, mas o inchaço do punho diz o contrário. Está confusa sobre seus direitos, os patrões a bancaram esses meses, mas deu game over pelo visto, pois a mandaram ao INSS regularizar a situação. O homem de Campo Largo é um caipira em Curitiba — Não sei andar aqui, me perco — repete sem parar, arrastando os erres pelo recinto. Chegou à antessala do atendimento, que fica no primeiro andar, sem passar pela recepção do térreo, onde pegamos as senhas. – Não sei andar aqui, me perco. Um guarda, a nosso pedido, o encaminha para recepção. Retorna agora com sua senha. Ganhou uma hérnia carregando sacos de cimento, conta.

Um porta-alguma-coisa de papelão destoa sobre a mesa de plástico. Guarda uns cartões ou fichas coloridas esquentando o cinza burocrático do móvel. Há outra mesa, com o protetor de acrílico igual à do perito. É a sala da assistente social, em outro prédio, na Travessa da Lapa, esquina com a avenida Guarapuava. Imóvel enorme, branco, ocupa quase um quarteirão. A assistente tem dois computadores e um nome, Estela. Não usa avental. Na parede, um cartaz desbeiçado anuncia os deveres dessa profissional, bens bons, merecem um novo suporte.

Entrei com a bolsa e o celular, havia apenas uma guarda na recepção, embora o espaço fosse bem maior que o da Cândido Lopes. Estela me faz perguntas com calma, respondo, ela digita. Abre um silêncio, dá pra ouvir trechos das outras entrevistas — O senhor está usando o aparelho agora? — uma voz de mulher soa alto. O fim da entrevista é cordial, na saída torço o pescoço para ver o que há dentro do porta-alguma-coisa — fichas? cartas? um jogo da memória?

Não creio que o INSS irá deferir meu pedido de aposentadoria. Talvez dê mais dois meses de afastamento para a cozinheira e torço para o caipira de Campo Largo conseguir seus meses também. Temo que ele converse com o mesmo médico-perito que me entrevistou. Na saída, o sol do capitaloceno me cega por uns segundos. Me oferecem um panfleto — Precisa de advogado? — DIgo que não, ainda sem enxergar direito. Subo rumo a Marechal Deodoro, me perguntando se o perito andaria sob aquele mesmo sol.


* Victor Brack, médico nazista em julgamento, Nuremberg, Alemanha, 1947. Fonte: Enciclopédia do Holocausto.

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