Tiranophone

Um meme icônico. Ou cirúrgico? Clichês não faltam. Adote o seu. Tutor de lugar comum. Ou coach, aproveita, a Internet é uma usina deles. A repetição aos baldes é seu suco. E o ganha-pão é nóis, de focinho no feed.

Mas do que eu tava falando mesmo? De meme? Isso. Um meme antológico, da Web2.0. Descrevo pra quem não lembra: card dividido ao meio, metade várias pessoas lendo um livro, outra metade várias pessoas olhando o celular. A mensagem era “não se preocupem, smartphone e livro são a mesma coisa, muda só o suporte”.

[bom dia, chegando em 10 min.]

[Opa, bom dia]

[Não vou poder descer agora]

[Deixa a compra aí no portão, p.fv. ]

[Blz.]

Desculpe, tinha de responder, entrega do empório. Onde estávamos? Ah, sim, o meme. Comparação entre livro e celular, só muda o suporte. Só que não (ou SQN). A leitura do livro é orgânica. É aquele jogo de amarelinha, a gente avança, desloca-se para o lado, salta, mas tá sempre ali, jogando. Certo, podemos levantar a cabeça, admirar o céu, ver um ganso voando, um caramelo quase sendo atropelado, o mano tatuado da cabeça aos pés, a nuvem nave regendo a tempestade. Tudo meio aleatório, mas tudo próximo da gente. E vai do nosso prazer pelo texto erguer ou abaixar a cabeça. Não tem um bilionário do Vale do Silicio nos puxando pela gola.

Com o tiranophone, não. Você tá ali, lendo o Orlando, da Virginia Wolf, por exemplo, num formato eletrônico qualquer. Daí, pipoca uma notificação do Whatsapp, outra do Instagram, um SMS do banco, noticia do Twitter, mensagem de golpe. Algoritmo com sangue nos olhos. Quando voce vê, tá tretando no Twitter, marcando uma cerveja com os parça, pagando um boleto, salivando diante do feed. E a página do Orlando boiando no LCD, esquecida.

(“Depois de vinte minutos, o corpo e a mente eram como pedaços de papel rasgado que caíssem de um saco, pois, de fato, o processo de sair de Londres dirigindo depressa se assemelha tanto à fragmentação da identidade que precede a inconsciência“.)

A internet é um aspirador digital. Do nada começamos a deslizar o dedo pela tela do Médiciphone, dez, quinze, trinta, quarenta minutos rolando o feed. Houve um tempo em que dava pra ignorá-lo, nem passava pelo nosso cerebelo que a dopamina iria nos algemar a uma sequência de emojis, a carrosséis de memes, a mensagens e pop-ups mil.

Tento resistir (“somos resistência”, pula o clichê), com ternura, por supuesto, contendo-me pra não espatifar o crackphone na parede. Prendo-o na mochila e saio andando pelo Centro de Curitiba pra me desintoxicar do mundo virtual. Passo pelas praças Generoso Marques, Santos Andrade, terminais de ônibus, estações tubo, lojas, farmácias, calçadão da XV, noventa por cento das pessoas vidradas nele — chamando o Uber, procurando endereço, consultando o cardápio, pagando conta, acionando o Estar, fuçando o feed.

Não demora muito, paro num café e solto o elemento eletrônico da mochila. E toco a espiar as mensagens, notícias, Tik Tok de gatinho, a separação da Sandy. E o Orlando aguardando.

[Não existe esse meme.]

[Existe, sim.]

[Tá viajando.]

[Se você achar, me manda, é pra crônica desta semana.]

[VTC, já disse que não existe.]

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