Mente canina

Bagu é telepata. Percebi recentemente. Não trocamos ideias feito o presidente argentino recém-eleito e seu cão. Nem lutamos numa arena romana, como o par canino-porteño em vidas passadas. Situação em casa é mais prosaica e contemporânea. Meu desejo de governar limita-se a tentar dominar o gerenciador de senha do computador e o sonho diário do Bagu é roer um osso bom e correr pelas ladeiras do Pilarzinho — até onde o entendo, pois não leio a mente dele, ele quem lê a minha.

Bagu veio adolescente pra cá, junto com Fran, irmão da mesma ninhada. Chegaram corridos depois de mastigarem uma tiragem de livros estocados na casa de uns amigos. Com rabichos de hipérbatos, restos de decassílabos, metáforas e símiles ainda presos às arcadas dentárias, o par caramelo aterrissou em nosso quintal. E batizados: Bagu, redução de bagunceiro; Fran, de franzino. Não que o segundo não merecesse a alcunha de travesso pra mais, apenas recebeu o nome por ser bem menor que o parceiro.

Bagu é medroso. Ou prudente. Os adestradores que fracassaram com ele alegam que esse comportamento se explica pelos maus tratos recebidos no passado. Como foi achado na rua e recolhido pelos amigos dos livros, que trataram muito bem dele, Bagu deve ter sofrido alguma violência bem antes, bem pequeno. Ou mastiga uma desconfiança natural pelo gênero humano, sinal de inteligência precoce. Desisti, por exemplo, de colocar uma guia para passear com ele. Nas vezes que tentei, Bagu arrancou guia e coleira juntas. Por isso, não passeia, corre pra rua, junto com o Fran, duas Ferraris caramelo-peludas.

Bagu apreendeu com os gatos a pedir comida. Observou os três felinos da casa por um bom tempo. Godofredo vem miando até a gente, senta-se e nos encara com os olhos amarelinhos aguardando levantarmos e o acompanharmos até o pote de ração. Madalena é mais comedida, posta-se ao lado da cumbuca de ração até alguém renovar sua comida. Joaquina liga a máquina de miar quando aparecemos na cozinha, onde ficam os potes – nem sempre, porém, mia com esse fim, que acaba, muitas vezes, indecifrável. Bagu pede do jeito dele: vai até onde estamos, sala ou escritório, abana o o rabo, arranha a pata no parquet, emite um som agudo, meio assobio, meio latido. Quase faz uma dancinha, de tão agitado. Isso ele aprendeu, a telepatia veio do berço.

Bagu sabe quando vou lhe dar banho ou apanhá-lo para levá-lo ao veterinário ou a qualquer lugar. Pensava que era por causa dos meus gestos e da minha forma de falar. Mas para ele — tom de voz, gestos mais cheiro do meu corpo — são como sirenes de uma ambulância. Sua percepção, vim descobrindo, é mais refinada. Primeiro, bastava comentar o propósito com a Adriana que aproximar-se dele tornava-se impossível. Descia pro quintal, dois passos meus, cinquenta dele pra longe. Um dia percebi que nem precisava falar, bastava pensar — “Hoje vou dar banho no Bagu” — para ele captar. Era cogitar e vê-lo dar os quatro por quatro passos pra trás, desconfiado caninamente de mim.

Sei não, mas se tivesse permanecido na casa dos livros, estaria alfabetizado e lendo. Escondido, certeza, a essa altura sabe bem do que os humanos somos capazes.

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