Você já viu, não tem como. Praga urbana, abraça lotes, esquinas e quarteirões. Arranha a rua amena, enfeia a esquina elegante, atropela o quarteirão antigo. Chapa a cidade, borra os bairros, rói as ruas, zomba da gente — “já era, perdeu, cidadão”. Obituário de aço galvanizado, aqui jaz a paisagem familiar, se prepara que lá vem pirâmide de concreto e vidro. Quitanda, barbearia, farmácia familiar, empório, boteco, demole-se tudo, vão pro brejo de vergalhão e cimento. Os tapumes de metal vão tomando a cidade.
Economistas e sociólogos que expliquem o fenômeno. Boa coisa não é, muito dinheiro na praça, capital financeiro e otras cositas más. Mas em Curitiba tem uma agravante. Por trás de muitas dessas chapas galvanizadas, suspira uma casa polaca. Ou Casa de Araucária, como alguns técnicos a chamam. De madeira, em geral colorida, com varanda, pingadeira ou lambrequim, quantidades e formas variadas de telhados, duas ou quatro águas, com avanços frontais e laterais. São o sal arquitetônico da cidade, o que dá graça e originalidade à contida capital do Paraná. São únicas, pelo que se sabe, não há registros de casas como essas na Colônia, nem entre as habitações indígenas, tampouco nas cidades de onde vieram os imigrantes que as construíram por aqui. Ainda vemos algumas delas no Centro, disfarçadas pelas fachadas de alvenaria, obrigatórias por lei municipal; outras pelos bairros mais centrais, inteiras de madeira, uma ou outra mais bem acabada, sinalizando o patrimônio dos moradores; e uma penca delas espalhadas pelos bairros mais distantes, de várias formas e tamanhos.
A maioria erguida com as tábuas na vertical, do lenho retilíneo e longo das araucárias, as quais lhes deram o nome. Entre as tábuas vai uma ripa para fixá-las, a mata-junta, que dá o ar de camisa de linho às suas paredes externas. Arrematam-lhe a delicadeza os rendilhados de madeira das pingadeiras ou dos lambrequins, boa parte incorporada às casas graças a outra lei municipal. Havia uma branca e azul, uma quadra antes do Bosque do Papa, perto do Museu Oscar Niemeyer, que só a palavra brinco a descreve. Pequena, varanda lapidada, suficiente para uma cadeira, telhados chanfrados dando-lhe volume, acendia-se única à beira do rio Belém. Antes de apagá-la, puseram-lhe um cinto de aço.
Resolvi defendê-las nas redes sociais, sugerir que a prefeitura de alguma forma as protegesse da especulação imobiliária. Recebi uma martelada de desaforos digitais. Foi um tal de “propriedade privada” pra cá, “vai você morar numa dessas” e” o que a prefeitura tem com isso” pra lá, que deu vontade de ligar para os investidores invisíveis, os especuladores intrépidos, os arrasa-quarteirões abençoados pelo capital, para parabenizá-los. Só não o fiz por desconhecer seus endereços e contatos. Que alegria poder destruir as cidades apoiados por tanta gente.
Por cento e cinquenta reais você pode comprar chapas de três metros e vinte pela internet. Dá pra pintá-las ou comprá-las coloridas. É possível inserir mensagens publicitárias, com o que se pode pagá-las e multiplicá-las. Dá para gravar mensagens positivas, tão extensas quanto forem os metros comprados. Frases sustentáveis, alvissareiras, até os versos de Clarice Lispector de Internet. Defendo pintarem-se os tapumes com desenhos do Poty Lazzarotto, particularmente o da casa de madeira que ele gravou no mosaico da Travessa Nestor de Castro no Centro de Curitiba. Toda a cidade que já foi e não volta mais reproduzida nos tapumes. A cidade chapada.
* Fotos minhas (as casas da foto ainda estão em pé).
