— Eu quero paz!
— Você é chinês ou japa, caralho?.
Uma pomba bica um colchão murcho sob a marquise do antigo prédio da Prosdócimo, na rua Cruz Machado, no Centro de Curitiba. Faz quase trinta graus. Ando em ziguezague, atrás de sombra, um tabuleiro de xadrez escaldante. A primeira frase acima ouvi de um morador de rua, vestindo calção azul, cabelos modernos como os do Marcelo, lateral do Fluminense. Falava alto, sem camisa, que ia agarrada às mãos. Enrolado nela, um fone de ouvido. Conversava com alguém?
A outra frase veio de dentro de uma lanchonete, na Praça Tiradentes. Já havia passado o Sacolão, a Rainha de Iemanjá, a Unibaby e a Gulla Mix Max. Virei pra identificar o autor, mas dei num breu. O solão de fora impedia de ver quem tinha falado dentro do bar. O timbre era de fumante, pregas vocais batidas em muita nicotina e álcool. Me lembrou a voz de uma antiga cliente que subia os dois lances de escada do Sebo que eu tocava em São Paulo. Sempre de preto, chegava no patamar da loja e ao pôr o pé na soleira da livraria dizia, com aquela voz craquelada por quilos de alcatrão: — Estou no bico do corvo!
Não sei se o suposto asiático respondeu ao decassílabo sujo do interlocutor preconceituoso. Talvez com outro palavrão ou um sopapo ou soltou uma redondilha rebobinada mil vezes “sou brasileiro, caralho”.
Minhas pernas tinham pressa de chegar à praça Generoso Marques. Estava atrasado para o home office do dia. Precisava chegar ao café do Sesc, ligar o computador, logar na rede da faculdade e trabalhar. Ainda avistei o Júlio César, morador de rua conhecido do Cento de Curitiba, carregando uma caixa grande de papelão, sem tampa. Sentou-se junto a uma das bancas de jornal próximas ao terminal de ônibus da praça. Seus olhos brilhavam. Mas minhas pernas seguiram em frente.
E dei com elas no relojoeiro. Tinha esquecido, meu relógio de pulso estava pronto. Me aguardava renovado na lojinha minimalista na galeria Pinheiro de Lima, onde apertam-se o relojoeiro Paulinho e a esposa. Miúdo, sempre com uma lupa no olho direito esgaravatando as engrenagens minúsculas dos aparelhos quebrados, conserva o ofício com preços honestos e sem muita conversa. O meu velho Orient voltara a funcionar e, ligeiro, me alertou que eu estava atrasado. “O Sesc é aqui do lado, basta atravessar a galeria até o fim, dobrar a direita, atravessar o sinaleiro e entrar no edificio de 1916, antiga sede da prefeitura”. Nem bem terminei de explicar isso ao Orient, minhas pernas me deixaram no interior do prédio, no salão do café.
A crônica acabou corrida. Os sentidos ficaram no ar, ar carregado de vozes, que ora querem paz, ora querem guerra.
* Foto de um trecho da Praça Tiradentes (foto minha).
