I. Um paisagista no Copan
Um metro e oitenta e pouco, nariz clássico, barba e cabelos encaracolados e pretos. Bonito. — Sou descendente de sírio-libaneses, disse. O nome, meio grego, não conseguimos entender. Vestia roupas escuras e segurava um saco de lixo preto, de sessenta litros, quase vazio. A sola dos pés e os dedos grandes tocavam o asfalto morno da ruazinha em torno do Copan. Pediu um cigarro, driblando a proibição do segurança do bar Orfeu.
Dei-lhe o cigarro que eu estava fumando e minha irmã trouxe mais um. Contou que era de Sergipe, disse ser paisagista e quando lhe perguntei por que estava na rua, duas lágrimas claras desceram pela pele escura. — Minha mulher, dois filhos…, balbuciou e calou-se. Dava pra ver que se virava mal, bem mal, na rua. Com um quase nada de reais a mais, seguiu para a avenida Ipiranga, sem olhar pra trás.
II. Maria Tomásia
O amante português a enganou. Comprou a casinha com o dinheiro dela, registrou no nome dele. Com o tempo, passou a bater (mais) nela. Perto do fim, se engraçou com outra mulata. Maria Tomásia ergueu um machado enquanto ele dormia e lhe decepou a cabeça. Arrependeu-se: “Ficasse com a casa e a amante!”. Ela vive hoje no Bambambã, do carioca Orestes Barbosa, livro de crônicas lançado em 1922, republicado em 1993.
III. Ciranda
Quem acompanhou o Letra Corrida este ano conhece o Júlio César. Preto, mais de um metro e setenta e seis, careca, barba preta, circula pelo centro de Curitiba com os olhos injetados. Apesar de visivelmente afetado por alguma doença mental, vira-se bem pelas ruas, ao contrário do paisagista do Copan. Talvez porque ele viva ao léu e desamparado desde criança. Ou porque tenha saído de casa adolescente, como o Claiton, que encontrei nas escadas do prédio do Correio perto da praça Santos Andrade. Confessou ser adicto, mas estava na rua porque apanhava do pai. Adicto como o pedreiro e ex-presidiário de Telêmaco Borba, transferido para a penitenciária de Piraquara e largado em Curitiba, terminada a pena. Como Michele, que foi torturada na cadeia, com saco plástico e agulha, por causa de 440g de crack, segundo contou. Não vê mais os filhos, Richard e Érick. Como o nosso paisagista do primeiro parágrafo.
IV. 2024
No ano que vem tem mais?
* Foto: Visão lateral do Edificio Copan, São Paulo (foto minha)
