Noturno do Pilarzinho

Onde começa, onde termina o Pilarzinho? Na rua Manife Tacla os grilos armam uma rede encantatória no ar. As luzes pálidas dos postes de iluminação compõem a noite provinciana, aqui e ali engrenada na roda contemporânea pelo escapamento aberto de uma motocicleta de deliveri. A lua cheia carimba o horizonte apertado pelos morrotes do bairro, quase tocando na pata desavisada de um gato malhado.

Da costela da rua Leonor Castelano, a Manife começa e segue margeando o Bosque do Pilarzinho até a Humberto de Campos. Ali, estreita-se antes de subir para o cemitério. Parece ter sido aberta à enxada, tão desalinhada que é neste trecho. Sem calçada à esquerda, um guard-rail separa o asfalto do fundo de um vale, à direita um pavimento estreito assentado em cascalho e mato mal calça o pedestre mais magro. O fiapo de rua faz uma curva ligeira, com direito a um pequeno calombo, além de subir em um aclive forte e bem apertado — dois carros não trafegam ali ao mesmo tempo.

Do lado do guard-rail, poucos metros acima, nasce uma calçada, que apascenta cinco ou seis casas modestas que dão de fundos a uma mata vigorosa, esquecida entre a Humberto de Campos e a Manife, pontuada por uma ou duas araucárias gigantes, dessas veneráveis, cada vez mais raras de se encontrar pela cidade. Mas logo a mata volta para a calçada e prega orelhas de elefante no poste da Copel, que do alto sopra uma luz cálida. Do lado oposto, o cascalho desmazelado ganha calçamento à medida que sobe, com degraus imodestos, vetados para cadeirantes e afins. Tudo feito a golpes de pá e picareta, valendo-se das coceiras do terreno, nada geométrico, moldado no calor da hora pelo morador apressado. Passo por um consultório ou clínica psicológica, anunciada por um banner pendurado em um muro cinza.

Na esquina com a Arsézio Antonio Scandelari, aponta sereno o cemitério da Igreja São Marcos. Com mil metros quadrados, foi licenciado em 1899 para ser o campo santo da “Colônia do Pilarzinho, (…) bem cercado e defendido contra as feras e benzido na forma do Ritual Romano”, nas palavras do livro de Tombo da paróquia de Santa Felicidade.  Na calçada oposta, uma fiada de casas simples bordam a Scandelari até ela contorcer-se em S para deslizar num declive até a avenida Amauri Lange. Entre essas casas, você pode ouvir uma moda de viola, provavelmente um Tião Carrero e Pardinho, tocada por seu Roque, no fundo da borracharia do seu Luís. Se apurar mais o ouvido, pode espantar-se com um sotaque diferente que escapa entre os ruídos de martelos e esmeris. Ali um paranaense selou nas cordas vocais o sotaque dos pais mineiros, o que infla o ar católico do quarteirão.

Os holofotes do estádio do Operário Pilarzinho Sport Club projetam uma luz futurista sobre a Amauri Lange. Uma piazada elétrica toca a bola num gramado verdíssimo. Uma fieira de araucárias equilibra-se no barranco que levanta-se na calçada da avenida, lavrada também à base da enxada e do improviso sobre o relevo bravio do Pilarzinho. O novo Hipermercado da região espalha mais luzes brancas nesse ponto onde os grilos não chegam. Avanço pelos aviários, farmácias e barbearias até chegar ao posto Tamanduá, ainda na Amauri. Meio das antigas, sem drugstore ou loja de conveniência, o estabelecimento acolhe atrás do balcão agitado simpáticos gerentes e frentistas, que contracenam com motoristas, fumantes e mesas de bar improvisadas coladas às bombas de combustíveis. O calor improvável do Outono cadencia a conversa e os risos entre os contidos curitibanos.

Com uma sacola cheia de cerveja, desço pela Humberto de Campos, observado pela lua que afasta-se do horizonte marchetado do bairro, em fuga dos homens. Ainda resta alcançar a Rolf Faria Gugisch, onde moro e onde reencontrarei o ciciar encantatório dos pequenos insetos em volta da casa submersa nesta noite sem margens.

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