Subimos no telhado II

“Havia um telhado no meio do caminho, no meio do caminho havia um telhado”, relinchou o bardo equino. Em 2021, um simpático cavalo arrebentou a cobertura de uma repartição municipal de Aricanduva que insistia em limitar-lhe o pasto. Três anos depois, um teto de zinco sustentou Caramelo por quatro dias em Canoas, no Rio Grande do Sul. O animal recebeu esse nome por causa da cor de sua pelagem, cujo brilho contrastava com a água lamacenta que tragou Canoas.

Ninguém duvidou da inteligência e do equilíbrio de Caramelo. O bichão driblou o dilúvio mantendo-se em pé sobre os quatro lisos cascos em cima do escorregadio teto canoense. A experiência local ajudou. A longa convivência com os rios Dos Sinos e o Gravataí mais a arte de construir canoas deram ao mamífero serenidade para suportar cerca de cem horas no cimo da casa engolida pelas águas.

Caramelo não só salvou o corpanzil, como manteve limpíssimas as polainas brancas das patas traseiras, como se as tivesse pateado em um capacho antes de subir no telhado. Estátua viva do desastre ambiental, contava com o valor simbólico de sua imagem, com o impacto da figura de animalão alçado a naufrágo do Antropoceno. Não resgatá-lo seria uma calamidade semiótica irreversível.

Como Bucéfalo, há um bom tempo Caramelo livrou-se de seu Alexandre, aliviou-se do peso humano no lombo e passou a dedicar-se aos livros e a observar a industriosidade nociva dos bípedes sem plumas. Nada espantado, o cavalo anteviu os maus lençóis em que pouco a pouco nos metíamos ao passarmos um rodo em tudo que brota na forma de vegetal cobrindo-lhe de cimento e soja. Sentia subir pelas ferraduras a vibração cada vez mais intensa do Sinos e do Gravataí. Quem entre as legiões de prefeitos e edis ouviria seus relinchos?

O cavalo de Aricanduva procurou recorrer à burocracia, por isso acabou entelhado no birô municipal. Acreditava no Estado de Direito e derivados administrativos. Caramelo, três anos e muita internet depois, percebeu que o símbolo é tudo e soube criar uma imagem animal: — Não me esquecerão!

Dopado e resgatado num imenso bote, o equino está sob cuidados veterinários. Já recebeu convites para estrelar o Fantástico ou sentar-se com o plastificado Roberto Cabrini no Domingo Espetacular. Uma fila de sujeitos se oferece para agenciá-lo. Até onde sei, Caramelo resistiu fina e equinamente a todos os assédios. Basta para ele, suponho, sua imagem impressa em nossas retinas tão intoxicadas. Uma veterinária conta que ouviu-lhe relinchar: — Subimos no telhado, literal e metaforicamente. Se nada fizerem, não haverá mais Fantástico nem Domingo espetacular!


* Foto: Reprodução.

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