Sai de baixo

– Ele foi pro time, alguém rebaixou, parece — explicou C., técnica de enfermagem, a B., paciente que aguardava um médico no Pronto Atendimento do Hospital V. A técnica seguiu no cuidado com os doentes da sala como se tivesse dito o óbvio. Impaciente, A. rogou pelo significado da charada à C. Time é a equipe de médicos, rebaixar é quando o paciente tem uma coisa, desmaia, enfarta, algo mais grave. Ele é o médico, né. Imediatamente passamos a temer o rebaixamento, torcendo para permanecermos na série A do plantão hospitalar, e tentando aprender o dialeto local. Mas rebaixei. Fui internado e conheci os círculos ocultos daquele hospital curitibano à margem da BR-116.

As técnicas e técnicos de enfermagem circulam por tudo. C., como S., bem como L., sem esquecer T., mais o restante do alfabeto, cumprem jornada dupla de trabalho. Fazem plantão em dois ou mais hospitais ou afins. Enquanto me levava para a sala da tomografia, J. narrava uma jornada ciclópica, um plantão a outro sem descanso. Em geral, combinam expedientes longos com descansos prolongados, esquema que nunca compreendo bem, mas nesse caso as horas de folga eram sempre muito inferiores às de trabalho, quando havia folga. Ou talvez eu tenha entendido mal, culpa desse dialeto deles, decerto.

Tem o círculo da punção, que é cíclico, beira o eterno. O momento inicial é a busca por um acesso a uma de nossas veias periféricas. O objetivo é inserir-lhes um cateter de 20G ou 22G por meio de uma finíssima agulha. São várias tentativas. Elásticos beliscando pelos e músculos dos braços e antebraços, gazes com antisséptico encerando os membros superiores, um tal de abre e fecha mão, picadas e o lamento intermitente — Perdeu a veia! — do técnico, da técnica, até o puncionamento final. Este quase sempre ocorre depois da quarta tentativa. Mas há a Rosa e o Léo, ases na arte de puncionar. Acertam na primeira, independente do plantão que estiverem ou das horas insones acumuladas. Propus-lhes um torneio para decidir o melhor puncionista do hospital. — É só marcar a data, disseram com uma pontada de ironia.

As enfermeiras-chefes — não vi enfermeiros-chefe — são educadas e simpáticas. Parecem comandantes de navio de filmes da sessão da tarde. Entram suavemente no seu quarto, voz adocicada, conversando contigo como se o vaivém nos corredores, quartos, laboratórios, cozinha, almoxarifado fluisse como uma canção do Lulu Santos. Esse momento Pequeno Príncipe caduca assim que entram o técnico ou a técnica de enfermagem, macetados pelos chamados e pelas tarefas dobradas que a composição deficitária do quadro de funcionários piedosamente lhes propicia. E há quem leve os próprios instrumentos de trabalho, como L., que não confia nos aparelhos que o nobre nosocômio lha empresta para exercer o ofício. E no que nos distraímos, a enfermeira-chefe some, abre um vácuo, ocupado mais tarde por outra e mais outra. O círculo delas gira mais rápido. Comandam essa roda ingovernável que nos hospeda com a finalidade de nos impedir de encontrar Brás Cubas antes da hora, de nos reerguer quando rebaixamos. Têm êxito, boa parte das vezes, não me pergunte como.

Os médicos habitam outros espaços, onde nem com cateter 30G se acessa. Abrem a porta do quarto, falam brevemente ora em nossa língua ora em dialeto local e vazam. Também são vistos com uma touca nas salas de cirurgia, que lhes infla as bochechas. Se homens, te cumprimentam e piscam para o anestesista, que logo te desacorda; se mulheres, explicam aristotélicas como vão te eviscerar. Em geral, as enfermeiras-chefe e cozinheiras os menosprezam, só as técnicas e técnicos do hospital os respeitam. Nos corredores, quando são flagrados, olham para o além, como se vagassem por outro círculo.

De madrugada, embalado pelas goteiras dos corredores do hospital e pelo opiáceo que fluía em meu sangue, sonhei com a visita de um velho etimologista. Desfiou o latinório sobre a palavra hospital. Um cavanhaque grisalho e um pince-nez dourado davam-lhe um ar de cavalheiro do século dezenove. Quando acordei, lexicalmente intoxicado, lembrei-me apenas de fiapos de sua intricada digressão. Cuspi uns mens sana in corpora sano, ad augusta per angusta, enquanto recordava sua lição. Dizia ele que hospício e hospital não divergem no sentido geral, o primeiro serviu para hospedar e encaminhar os pobres mais rápido para o além; a diferença entre manicômio e nosocômio é a posição do maníaco, que atualmente gerencia o segundo; e que na raiz de tudo tem uma pecinha morfológica latina, o radical host-, que identifica hóspede a hostil. Foi o suficiente para pedir alta a meu médico quando ele apareceu e sair dali o quanto antes.


* Imagem: Quadro a óleo do artista francês Tony Robert-Fleury, apresentado no Salon em 1876. Retrata o médico Philippe Pinel e pessoas com problemas mentais (Fonte: Wikipédia)

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