Cachorro louco das palavras

ao Dalton Trevisan, com um abraço do Campos de Carvalho

– Sarou, tanto que se suicidou!, diz, à mesa, sem desarranjar os cabelos grisalhos. A amiga encolhe-se a cada palavra. Pudera, chove um decassílabo moral atrás do outro sobre ela. Um senhor ao lado veste o impermeável. Tem ele nada com isso, remediar pior que prevenir. — “O rosto calmo e tranquilo do rio me pediu um beijo”, murmura alguém sem dizer poema de quem. – Bilhete de suicida!, ouve-se uma voz debaixo da mesa da livraria da Praça Santos Dumont, no Centro de Curitiba.

Uma tarde gloriosa, sumo sol, azul astronômico, batida de maracujá boa de tão ruim. Cheiro de filé à parmegiana espalha-se pelas calçadas da Alameda Cabral em frente ao Maneko’s. Uma sombra, porém, é preciso. Acha-se uma vaga num banco da arborizada praça Osório. A Feira de Inverno começou, cansaram todos de esperar o frio.

O baixote pançudo a um triz do ridículo é interrompido pelo monge Hare Krishna. – Monge, porém moderno, aceitamos pix e cartão. O baixote saca o celular e um punhado de reais reencarna no mosteiro hindu da rua Duque de Caxias, perto do Largo da Ordem. Ali, quase na esquina da rua 13 de Maio, todos os dias, na hora do almoço, coladinhos à parede, rentezinhos às velhas pedras da calçada, moradores de rua, artistas de faróis e calçadão, putas, desempregados, vampiros, polacos bêbados, carrinheiros, refugiados e estudantes desdinheirados formam uma fila à porta do templo Krishna, à espera da comida gratuita. O monge é jovem como uma estrela nova, tão transparente!, desaparece atrás da túnica rosa.

— “Duas palavras que grudam na branda garganta das musas”, ouve-se do alto das árvores da Praça Osório. . – Foi esse que se matou?, pergunta o catador de latinha – Não, não, disse a vendedora de hot dog, esse é inglês, é lorde. – Com ou sem ketchup? – Com, sempre! Veloz, o catador arranca a lata de refrigerante da mesa e joga no saco plástico preto, o canudo capota e para no petit pavê da praça. A Feira de Inverno está pegando fogo. – Quer tacacá? – Prefiro acarajé. – Acabou o ketchup?

O pançudinho calvo percebe a bagunça que está fazendo (– Ordem em tudo isso ou morte!) – Ninguém se matou, apenas versos de um poeta americano, amigo de Malcom X. – Ah! Mas preto?, cospe o racista que nunca falta, corre dali debaixo de muita lata. O baixote pega uma e entrega à catadora de xuca hipster no cocoruto. Atrás dela, um menino de internato, branco igual mingau aguado, cinto apertado na barriga: – À loja de brinquedos, Mamãe!, o braço feito uma espada no ar, o boneco mole na mão do pai. O cheiro de acarajé embaraça-se no de tacacá antes que alguém desse por encerrada a história.

– Com pai daqueles, matar-se foi pouco, continua a decassilábica grisalha, quando só o homem do impermeável a escuta. — A livraria vai fechar! — É dia dos Namorados, alguém lembra. Um bando de ubers intoxica a cidade com um enxame de passageiros aflitos para jantar à vela,  ou sem vela, como der, que seja. – Não sou bobo, vou levar minha namorada ] pra jantar amanhã, discursa o Uber, ao deixar o pançudinho em casa.

Dois dias depois o careca a um triz do ridículo sai da sombra. Corre até a Biblioteca Pública do Paraná, na Cândido Lopes. Querem entrevistá-lo, sobre o Trevisan, uma rádio local, pelos 99 anos do escritor nelsinho, catorze de junho. Pegaram o pançudinho de surpresa, só o Púcaro búlgaro na mochila, nada de vampiro. Empresta o Anão e a ninfeta e as 99 corruíras. Busca um decassílabo daltoniano para impressionar a jornalista. Antes dele, o homem do impermeável: – “Sarou, tanto que se suicidou”.


* "Bilhete de suicida" é um poema de Langston Hughes, na tradução de André C. AUbert (Rascunho, junho 2024);"Duas palavras que grudam na branda garganta das musas" é um verso de Lord Byron. Imagem: Dada Tour in Netherlands, de Theo van Doesburg in Wikimedia Commons.

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