As voltas que Curitiba dá

“A cidade orgulhava-se de sua praça, com igreja, hospital, farmácia, loja de armarinho, retratista, dois carros de aluguel e, no canteiro de rosas, o busto do herói.”

Dalton Trevisan, “Morte na praça”

A estátua de Ébano Pereira desdenha o pobre-diabo caído junto ao pedestal. O desventurado resmunga algo para o impassível General das Canoas, ergue os braços, chacoalha a garrafinha de corote colada na mão direita. Quem sabe esteja a cobrar uma dívida do antigo colonizador. Imóvel, Pereira o ignora, mIra adiante, quem sabe à procura de novos tesouros na esquina da Saldanha Marinho. Teria saudades dos aluviões de ouro que administrou em Paranaguá? Sonha com a praia de Botafogo, cujo nome deve-se a um parente seu, um João de Souza Pereira artilheiro, quem botava fogo no pavio dos canhões no século dezesseis, o apelido daí.

O pobre-diabo ainda insiste, com os braços em cruz, cuspindo flores de perdigotos murchas. Nem o coroa, de cabelões brancos, camisa 10 vermelha, focado em algum solo de guitarra dos anos 1970, nem o casal gay passeando com um galgo aceitam mediar esse litígio. O entrevero acaba sob as botas de um PM Robocop que convida o caipora a se escafeder, decerto a mando do estático Pereira, que parece botar ordem por ali ainda. Dois garis acesos por macacões laranja com faixas verde-limão varrem o petit-pavê, o nosso descamisado atravessa a Saldanha Marinho e se ajeita junto a parede da livraria Telaranha, longe do olhar de bronze do colonizador.

* * *

— Por que você não fez nada? — A. pergunta para S., o massoterapeuta de Ourinhos.

— Uma andorinha só não faz verão –, S. devolve, cínico.

Estamos na mesa do Sam Sweet, doceria libanesa do Samih e da Sara, na Voluntários da Pátria, no Centro de Curitiba, ouvindo o palavrório de S., que dá um jeito de sentar-se conosco. Depois de uma longa exposição das técnicas de massagem, o paulista radicado em Curitiba levanta âncoras e navega longe ao dizer que havia profetizado a epidemia de Covid-19 em 2013. Daí a réplica de A., alongada pelas sibilantes cariocas, a delimitar o território.

Entre uma mordida nos deliciosos doces libaneses e um gole no café de cardamomo, seguimos ouvindo as viagens do massagista, cujo consultório esconde-se nos corredores do enorme Edifício ASA, do outro lado da rua, na esquina da Carlos de Carvalho. Enfunando as velas do seu delírio, declara que havia escolhido não ser pai — As crianças sao muito moles hoje!, sustenta. — Mas voce seria o pai!, soltamos em coro na mesa do Sam. Ele deu uma saída misógina, acusando a hipotética mãe. Sem convencer ninguém, virou o leme para Israel, descrevendo as maravilhas tecnológicas criadas lá, cachos de uvas imensos, escavaçoes fantásticas. Lembrando dos horrores na faixa de Gaza, levantamos e pagamos a conta. Um velho pousa-lhe a mão no ombro, lhe diz entredentes: — Corajoso, você falar de Israel num café árabe. O massagista de Ourinhos não se abala, afogado no labirinto dos seus delírios.

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Voz grave e empostada, o corretor Z.R. tenta explicar as diferenças de preço entre os apartamentos em pré-venda no Pilarzinho. Atordoado pela velocidade com que A. lhe pergunta sobre preços, medidas, ZR anda em zigue-zague atrás de pastas, prospectos, flyers, dentro do contêiner climatizado que lhe serve de escritório. As unidades são caríssimas, acima de um milhão. Tem apartamento garden, tem varanda gourmet, tem bosque preservado, uma repaginação do Paraíso tem. Com direito a uma planta em catavento que poupa o condômino de bisbilhotar e ser bisbilhotado pelo vizinho. Melhor que isso só o nome que batiza o empreendimento, Ekko, dois imensos blocos concretados sobre um antigo bosque entre a rua Francisco Caron e a Leonor Castellano. Na saída, A. segura um prospecto nas mãos, o corretor despede-se com otimismo nos olhos e volta para a caixa de lata onde aguarda mais forasteiros em busca do paraíso.


* Estátua de Ébano Pereira, praça Santos Dumont, Curitiba (Foto minha).

* * Informaçoes sobre Ébano Pereira foram tiradas de "Eleodoro Ébano Pereira e a fundação de Iguape", de Roberto Fortes, publicado na página Cidade de Iguape, 11/07/2019.

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