Margem de erro

Gabriel olha por um tudo. Com dois olhos duros. Nada escapa dele. Promete transparência e inteligência. Você o encontra nas ruas de São Paulo na forma de totens hipermodernos. É a nova traquitana de vigilância que tem brotado por todos os cantos da cidade. Implantado na frente de edíficios, vai de cores suaves, verde e branco — esperança e pureza — e duas câmeras no topo. No meio, a logo e o nome angelical destacados, seguidos abaixo por uma frase singela e de sintaxe estropiada: ” Veículos envolvidos em crimes detectados e reportados automaticamente a Polícia” . Rebaixaram o anjo: de mensageiro a dedo-duro. Mas Gabriel nao está só, em frente a um edifício ao lado da Livraria da Vila, na Fradique Coutinho, impera o Haganá, totem de vigilância de empresa concorrente. Mais austera, a engenhoca apocalíptica tem mais câmeras, contei quatro, e uma estrela de David coroando-as, alertando que ali o jogo é bruto. Tecnologia israelense na veia. Não sei qual a margem de erro, mas essa combinação entre religiao e segurança não vai dar ruim?

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Todos temos problemas com guarda-chuvas. Com o apocalipse climático, só pioram. Nesse final de semana, o Barrigudinho Careca por um Triz relatou dois contratempos com esse artefato milenar. Repasso o que ele me contou.

O primeiro se deu num passeio com uma parente nonagenária, a quem se prontificou a proteger dos perigos desta vida, empunhando o aparador de intempéries com vigor, de modo a impedir que gota alguma a alvejasse. Na metade do caminho, deu tudo certo. Ele e a parente chegaram enxutos ao destino, a um almoço num amplo apartamento situado num nobre bairro paulistano. Na volta, porém, depois de despedirem-se dos amigos, de descerem sossegados os vinte andares em um moderníssimo elevador, de barriga e bexiga cheios do bom e do melhor, de desembarcarem no suntuoso átrio do edifício, perceberam, ou melhor, o barrigudinho careca por um triz percebeu, que haviam esquecido o guarda-chuva duas dezenas de patamares acima. A nonagenária olhou para a rua encharcada pela chuva. Destemido, o barrigudinho embarcou no elevador futurista e decolou rumo ao vigésimo andar. Mas ao chegar no topo, descobriu que a porta do ascensor só abria mediante uma senha. Esmurrou a porta, tentou um abracadabra, mas só colheu o silêncio como resposta. Voltou ao átrio cinematográfico e descumpriu a tarefa de proteger a consanguínea pré-centenária. Meia dúzia de pingos gelados não a abalaram, porém, não apanhou gripe sequer. Segue o baile, como dizem hoje, menos pro barrigudinho, que ficou sem o guarda-chuva.

O outro episódio ocorreu no dia seguinte, numa tarde pegajosa, entre a rua Wisard e a Fidalga na Vila Madalena. O Pançudinho Careca furtou um guarda-chuva. — Era igual ao meu, mas eu devolvi!, defende-se.

Ele conta que entrou no Sebo Universo, aberto em pleno domingo, encontrou um exemplar do romance Berlim ALexanderplatz e o acaso o levou ao furto. No balcão, na hora de pagar pelo romance de Döblin, notou um volume do Grande Sertão: Veredas à esquerda e um guarda-chuva preto à direita, igual ao que perdera no dia anterior. Pagou o Berlim, saiu da loja e dobrou na rua Fidalga em direção ao cemitério São Paulo. Feliz com o exemplar adquirido, preso debaixo da axila esquerda, virou-se para a vitrine da loja Cerâmica Cia. e notou, em sua mão direita, o guarda chuva preto. As pernas foram as primeiras a alertá-lo — Nao é seu! Hesitou, o ar frio e grudento o paralisou por uns segundos, mas decidiu dar meia volta até o Sebo Universo. Ultrapassou a soleira e proclamou: –– Levei por engano esse guarda-chuva. O dono riu, assim como o proprietário da loja. Mas o Barrigudinho confessou-me: — Se fosse o Grande Sertão, não voltava. Sem margem de erro.

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Pensei, ela precisa de um Gabriel. Em uma papelaria antiga no Centro de Curitiba, instalaram uma campainha na porta da loja. Se antes o acesso era livre, hoje é preciso esperar alguém aparecer para podermos entrar e olharmos os cadernos, as esferográficas, as borrachas e objetos afins. A dona é uma mulher magra como um lápis, cabelos grisalhos, vestindo um guarda-pó. Ela explica a um senhor inconformado a razão da estratégia adotada pelo estabelecimento. — Toda hora vinha um sujeito aqui pedindo alguma coisa. A cidade tá cheia de vagabundos. O senhor seguiu refutando, disse à proprietaria que aquela era uma saída ruim: — Achei que a loja estava fechada, quase não entrei, insistia. Inflexível, esfregando a mão no avental, ela comentou que outro dia um desses invasores a intimidou, dizendo que ia levar algumas mercadoria se ela não lhe desse nada. O cliente ainda disse algo que não ouvi e saiu.

Fui ao balcão pagar meus dois lápis 8B e duas canetas Drawing Pen 08 e topei com a foto e uma frase de Margaret Tatcher emolduradas num pequeno quadro em frente ao Caixa: “Nao existe dinheiro público. Existe o dinheiro do pagador de impostos”! Vacilei e acabei não lhe sugerindo a instalação de um Gabriel em frente a sua loja. Certeza de que ela gostaria, só não sei se bancaria os custos, afinal era uma thatcherista convicta. Fica na margem de erro.


* Totem fotografado por mim, São Paulo-SP.

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